top of page
Buscar

VIGOREXIA COMO SINTOMA SOCIAL NA CONTEMPORANEIDADE




Resumo:

Este artigo explora a emergência da vigorexia — também conhecida como dismorfia muscular — como sintoma psíquico-cultural característico da contemporaneidade. A partir de uma abordagem psicanalítica, analisa-se como a cultura do narcisismo, o culto à imagem e as exigências de performance corporal contribuem para a constituição desse quadro clínico. O texto também discute os desafios que essa nova forma de sofrimento impõe à clínica atual e propõe reflexões sobre estratégias terapêuticas possíveis para a escuta e o tratamento do sujeito vigoréxico.



Introdução:

Alguns autores definem a contemporaneidade como um tempo de demandas excessivas sobre o sujeito. Zygmunt Bauman (2001) e Gilles Lipovetsky (2004) destacam algumas de suas principais características: Individualismo exacerbado e fragilidade dos vínculos sociais; Aceleração do tempo e cultura da urgência; Sociedade do desempenho e da produtividade; Predominância da imagem e da aparência; Crise das instituições tradicionais, como família, religião e Estado; Flexibilidade identitária e pluralidade de estilos de vida e ainda a mercantilização da vida e das relações sociais. Diante de tantas demandas, novos sintomas surgem e assim convoca a psicanálise a buscar recursos para lidar com as patologias contemporâneas.

A predominância da imagem e da aparência faz do corpo projeto e capital simbólico, promovendo pressões por perfeição física, sucesso estético e exposição contínua nas redes. (Lipovetsky, 2004.)O corpo é a expressão de um simbólico precário e ineficiente, assim observa-se um sujeito-corpo ao invés de um sujeito-eu. Dentre os novos sintomas emergentes, observa-se uma obsessão por um corpo idealizado e inalcançável. Trata-se da vigorexia.

Segundo Pope, Phillips e Olivardia (2000), pioneiros na definicão da vigorexia, trata- se de um de transtorno dismórfico corporal em que o indivíduo, mesmo fisicamente musculoso, se percebe pequeno e fraco. Essa percepção distorcida leva à compulsão por treinos intensos, dietas rigorosas e uso de substâncias anabolizantes. Sob um enfoque biomédico, Campos, Telles e Silva (2008) descreve a vigorexia como uma alteração do comportamento em que o indivíduo, insatisfeito com seu corpo, desenvolve uma busca compulsiva por hipertrofia muscular, colocando em risco sua saúde física e psíquica.

Numa perspectiva sociológica, Bauman (2001) diz que na sociedade de consumo, o corpo passa a ser moldado como projeto individual de valor. A vigorexia é uma resposta patológica à pressão por performance e aparência, revelando a internalização de ideais sociais inatingíveis.

A psicologia clínica vincula a patologia com a masculinidade, citando que a dismorfia muscular compartilha traços com transtornos alimentares, sendo sua principal característica a obsessão com o volume e definição muscular, impulsionada por normas culturais de masculinidade.





Diagnóstico diferencial:

A prática saudável da hipertrofia muscular envolve objetivos claros (ex: melhorar força, saúde ou estética) sem prejuízo psicológico ou social; A rotina de treinos e alimentação está integrada à vida cotidiana, sem causar isolamento ou sofrimento psíquico e o indivíduo reconhece seus limites corporais e respeita períodos de descanso.


Quando trata-se da Vigorexia (ou dismorfia muscular), há a distorção da autoimagem: o sujeito se vê pequeno ou fraco mesmo sendo musculoso; O treino se torna compulsivo, afetando a vida social, profissional e afetiva; Comportamentos de risco são comuns, como o uso abusivo de anabolizantes e dietas extremas e o foco no corpo torna-se central na identidade e autoestima.





A psicodinâmica do sujeito vigoréxico:


A dinâmica psíquica do sujeito vigoréxico, sob a ótica da psicanálise, revela um funcionamento marcado por conflitos profundos ligados à constituição do eu, à imagem corporal e à relação com o ideal do eu. A vigorexia, entendida não apenas como um transtorno comportamental, mas como uma forma contemporânea de sofrimento psíquico, pode ser analisada como expressão de um mal-estar narcísico e de uma tentativa de tamponamento de falhas estruturais do sujeito.


Segundo Freud, o corpo é o primeiro objeto de investimento libidinal no narcisismo primário. A imagem corporal, nesse sentido, é constituída no campo do desejo do Outro. A distorção dessa imagem – como ocorre na vigorexia – evidencia uma fragilidade narcísica, em que o corpo torna-se um "suporte imaginário do eu".“A formação do eu passa pela imagem corporal. A insatisfação obsessiva com o corpo revela um eu instável, incapaz de lidar com a castração.” (FREUD, 1914) Françoise Dolto também contribui ao conceber o "corpo-imagem" como uma construção psíquica. Para ela, distúrbios na imagem corporal refletem falhas na simbolização e na estruturação do sujeito.


Jacques Lacan, ao reformular a teoria do narcisismo, destaca a importância do Ideal do Eu (I) e do estádio do espelho. O sujeito vigoréxico estaria preso a uma imagem idealizada, perpetuamente inatingível, que lhe é imposta pelo Outro social (mídia, cultura, performance).“O sujeito, na vigorexia, tenta preencher uma falta estrutural através da hipertrofia do corpo-imagem, respondendo a um supereu tirânico que exige: ‘seja perfeito, seja forte’.(LACAN, 1953-1954)

Esse supereu contemporâneo não mais proíbe, mas ordena gozar (Byung-Chul Han), mantendo o sujeito em constante exaustão e inadequação.


Para o psicanalista brasileiro Joel Birman, as patologias do corpo na contemporaneidade (como a vigorexia) expressam um deslocamento da angústia para o corpo visível. O sujeito contemporâneo, “órfão de referências simbólicas estáveis”, tenta inscrever sentido no corpo: “O corpo hipertrofiado é uma armadura narcísica contra o desamparo, uma tentativa de tamponar a falta e o vazio constitutivo.”(BIRMAN, 2001).


Constata-se que a vigorexia é uma tentativa de tamponar um eu fragmentado ou vazio e uma tentativa de atingir o corpo idealizado pela cultura, corpo esse inalcançável, segundo a definição dos autores acima, condizente com uma contemporaneidade de excessos.




A clínica do vigoréxico:

Segundo Joel Birman (2001), o vigoréxico geralmente chega à clínica não pelo sintoma em si, mas por colapsos adjacentes: isolamento social, depressão, crises de identidade ou uso abusivo de anabolizantes. O primeiro passo é ouvir o sujeito para além da queixa manifesta, acolhendo a angústia que sustenta o sintoma corporal.

“A clínica com esses sujeitos exige escuta flutuante e paciência interpretativa, pois o corpo tornou-se o lugar principal de inscrição psíquica.”(Birman, 2001)

A clínica precisa trabalhar as identificações imaginárias rígidas que sustentam o ideal corporal inatingível. Como aponta Françoise Dolto (2010), a distorção da imagem corporal revela uma falha na constituição simbólica do eu e exige que o tratamento reenquadre o corpo como lugar de fala, e não apenas de forma: “É preciso devolver ao sujeito seu corpo como linguagem, e não como vitrine.”(Dolto, 2010)

Lacan enfatiza que toda clínica psicanalítica implica trabalho com a falta. No

vigoréxico, o corpo tenta negar a castração pela via da onipotência muscular. A clínica visa a possibilitar o luto do corpo idealizado, permitindo ao sujeito tolerar o inacabamento, o limite e o desejo. “A cura não é o desaparecimento do sintoma, mas o reposicionamento subjetivo frente ao desejo do Outro.” (Lacan, 1953-54)

A prática clínica do vigoréxico convoca um trabalho multidisciplinar envolvendo acompanhamento psiquiátrico: nos casos em que há comorbidades como depressão ou ansiedade generalizada; Orientação nutricional e médica: para conter o uso de anabolizantes e reequilibrar práticas corporais.

Como destaca Grieve (2007), o sucesso terapêutico depende de construir uma aliança terapêutica que desestabilize o sistema de crenças distorcidas sobre o corpo.“A resistência ao tratamento é alta, pois o sujeito crê que está saudável. Por isso, o vínculo terapêutico é tão crucial.” (Grieve, 2007)




Considerações Finais:

A vigorexia, longe de ser apenas um distúrbio corporal ou estético, se configura como um sintoma psíquico-cultural profundamente enraizado na subjetividade contemporânea. No cenário da cultura narcísica, como analisado por autores como Christopher Lasch (1979), Joel Birman (2001) e Byung-Chul Han (2017), o sujeito é convocado a sustentar uma imagem ideal de si — forte, performático, incansável — mesmo às custas do esgotamento físico e psíquico.

A emergência da vigorexia está diretamente ligada a esse imperativo: "deves ser teu próprio projeto", "teu corpo é tua marca", "não mostres tua fragilidade". O corpo hipertrofiado passa a representar uma armadura narcísica que mascara um eu frágil, desamparado e constantemente ameaçado pela angústia da falta.

Nesse sentido, a vigorexia pode ser compreendida como uma patologia do excesso de idealização e da recusa da castração, em que o sujeito tenta, através do corpo, atingir um gozo pleno e impossível — um corpo invulnerável e absoluto que elimine a falta.

Diante disso, a clínica psicanalítica é desafiada a rever algumas de suas práticas. Não basta apenas interpretar simbolicamente o sintoma; é necessário criar dispositivos de escuta sensíveis à cultura contemporânea, que considerem:

• A centralidade do corpo como lugar de inscrição simbólica e afetiva

• A lógica neoliberal que transforma o sujeito em empresa de si mesmo • A exigência de perfeição que opera via supereu contemporâneo (que manda

"gozar", "render", "vencer")

A escuta psicanalítica deve, portanto, tornar-se também política e ética, acolhendo o sofrimento subjetivo que se expressa por vias corporais e imaginárias. Os psicanalistas, frente a sintomas como a vigorexia, são chamados a inventar estratégias clínicas que favoreçam o reconhecimento da falta, o luto do eu ideal e a reintrodução do sujeito no campo do desejo, e não apenas da performance.



Bibliografia:

  • BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

  • BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

  • DOLTO, Françoise. A imagem inconsciente do corpo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

  • FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo (1914). In: FREUD, S. Obras completas. v. 12. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

  • GRIEVE, Frederick G. A conceptual model of factors contributing to the development of muscle dysmorphia. Eating Disorders, New York, v. 15, n. 1, p. 63–80, 2007.

  • HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.

  • LACAN, Jacques. O seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud (1953-1954).Rio de Janeiro: Zahar, 1996.

  • LASCH, Christopher. A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de

esperanças em declínio. Rio de Janeiro: Imago, 1983.

  • LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Lisboa: Edições 70, 2004.

  • LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

  • POPE, Harrison G.; PHILLIPS, Katharine A.; OLIVARDIA, Roberto. The Adonis Complex: The secret crisis of male body obsession. New York: Free Press, 2000.

  • SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2006.

Este artigo foi finalizado em 02 de Junho de 2025




 
 
 

Comments


Psicanálise Contemporânea
bottom of page