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Reflexões sobre a Cracolândia



Eles estão na rua. São da rua? Chegam da rua. Nos espaços de recuperação. Não

passam por uma clínica, às vezes. Alguns têm medo de não conseguirem viver sem a droga. O corpo, a mente, a alma pedem por ela. 24 horas. A família geralmente os trata como loucos, idiotas, cínicos, mentirosos, sem caráter... E assim passam a se ver. Bandidos. Assim a sociedade vê. Prometem, todo dia, quando tudo é cinza, parar. Não conseguem. Ainda não sabem que se trata de uma doença crônica, que pode ser detida, e que exige tratamento contínuo. Se deixarem. Se a família e o entorno permitir tratamento, também. E colaborar. Se a família se submeter a tratamento a chance cresce. A adicção é uma doença da família. E normalmente se manifestará no mais fraco. Como diz o jargão, alguém será “a lata de lixo” da família.


Não acreditam mais neles mesmos. São dias na rua, vendendo tudo, trocando tudo... Aprendendo sobre a dura – e eficiente – ética das ruas. Olho por olho, vacilou dançou. O principal é ter a droga e um lugar para dormir. Depois de um tempo, só ter a droga.


Além de muitas outras propostas discutidas no Ato/Escuta do sábado último em São Paulo, a psicanálise aponta para essa questão do ato sintoma no corpo. A sociedade contemporânea varrendo a questão para debaixo do tapete, como jogava os indesejáveis na Nau dos Loucos.


Alguns desses “da rua”, podem descobrir os grupos anônimos. Muitos iguais ali. Nada exigem. Só pedem que voltem. Descobrir um analista que não jogue no divã depressa, que ouça com calma e dê algum retorno, às vezes com o olhar pode salvar vida. Colar um espelho estilhaçado... é possível? Não sei. O que sei é que a vida de alguns pode seguir.


Muitos que conheci passaram por internação. Livre vontade ou compulsória. O que é forçado dificilmente funciona. Porém, se o risco de vida requer urgência, agir com a urgência necessária, caso médico. E zelar por encaminhamento cuidadoso. Intervenção orientada. Diálogo. Há clínicas e clínicas. Adictos e adictos. Já vi alguns se internarem sóbrios, quando percebem o perigo próximo. Quase todos fazem algum tipo de acompanhamento para além dos grupos anônimos: análise ou terapia. O envolvimento familiar, quando possível é extremamente importante.


O que parece fundamental lembrar: É uma doença familiar. É uma doença da família. E vai se manifestar naquele que será a “lata de lixo” da família. A família tem que ser tratada também. Na impossibilidade, o drogadicto precisa enxergar esses laços doentes.


Nunca a violência resolve. Violência com dependente químico é enxugar gelo. E é indigno. Afasta. Marca. Feito gado. Joga na Nau dos Loucos.


Cracolândia pode evocar Disneylândia. Não é Disneylândia. É triste. É feio, sujo.

Indigno. Em termos práticos, pensar num espaço limpo, com/quartos habitáveis,

cheiro bom, café e pão quentinho, banho, pertences guardados, CAPs e escuta

cuidadosa ali dentro, Grupos Anônimos, psicólogos, psicanalistas, assistentes sociais, médicos e portas abertas. Para familiares também. União de forças do que funciona. Traficante do lado de fora. Aqui em São Paulo. Por que não?


Ah... tem que fazer concurso... Licitação... Saúde pública é regime de urgência. Inverno chegando. Não é gado. Importante ver gente em recuperação, trabalhando, produzindo, em paz. Eles sabem o que é essa dor. E como dói. Ouçam. Olhem.


Só uma idéia. Ir até eles. Não é tirar de lá. É ir até lá. Tratar lá. Deixar o lugar feio

bonito. Não é espalhar. É juntar. Num local agradável. Para cuidar. E ouvir. Ouçam. Olhem. Espelho.


Junho/2017




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Psicanálise Contemporânea
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