PSICANÁLISE E LIDERANÇA NO AMBIENTE CORPORATIVO
- Melanie Salgado
- 28 de mai.
- 4 min de leitura
O objetivo desse texto não é realizar nenhuma análise psicanalítica acerca das
figuras de liderança, que fique claro. Nosso objetivo é apenas mostrar que a psicanálise pode, apesar de possuir uma natureza avessa ao institucional, oferecer uma ótica interessante na compreensão de conflitos, insatisfações, falta de motivação ou baixa de rendimento no ambiente organizacional e até, eventualmente, oferecer formas de tentar evitar alguns desses obstáculos a um ambiente corporativo produtivo, mesmo que apenas como uma hipótese em exercício.
Quando pensamos em mapeamento e compreensão do universo corporativo, a
primeira linha que tende a aparecer no horizonte é a comportamental, trazendo, de braços dados, o coaching e todas as variações que derivam dele.
Através dessa metodologia amplamente “viralizada” no ambiente corporativo (e
fora dele), procura-se identificar o que está faltando para determinado profissional a fim de traçar um “plano de ação” com estratégias para que as habilidades desejadas sejam adquiridas, melhoradas ou características indesejáveis sejam deletadas.
Mas engana-se quem pensa que a psicanálise não possui nada que possa
interessar o mundo organizacional no que diz respeito à compreensão do fator
humano inserido nesse contexto.
Devemos chamar, a essa altura, o que Freud nos diz em Totem e Tabu (1912):
“A projeção de percepções internas pra fora é um mecanismo primitivo, ao qual,
por exemplo, estão sujeitas nossas percepções sensoriais, e que, assim, normalmente desempenha um papel muito grande na determinação da forma que toma nosso mundo exterior.”
“(...) as percepções internas de processos emocionais e de pensamentos podem
ser projetadas para o exterior da mesma maneira que as percepções sensoriais.”
Se escolhermos um aspecto bastante crítico do contexto corporativo, como a
liderança, percebemos o quanto a forma como um sujeito introjetou as figuras
parentais, as figuras de poder, como registrou psiquicamente situações de risco ou desafio, como seu complexo de Édipo se desenrolou, vai, sem dúvida nenhuma, impactar a forma como ele percebe o ambiente organizacional e como se relaciona com seus personagens.
A liderança pode ser percebida de muitas formas na medida em que cada
membro de uma equipe possui um “aparato psíquico” distinto, pessoal e
intransferível. O mesmo manejo poderá ser percebido como estimulante, ameaçador, cativante, enérgico ou quaisquer outras possibilidades.
Um líder, por exemplo, que estimule a independência, contando com o bom
senso de cada um no que diz respeito a regras, pode ser percebido como caótico, desorganizado, ou desestimulante para alguns. E isso não diz respeito a história de vida dos colaboradores, pois ter sido acostumado com excesso de regras pode causar dependência a regras rígidas, total aversão a regras ou a compreensão de que uma ponderação é necessária, dependendo da estrutura de cada um.
A figura de liderança pode pensar estar apenas desempenhando uma função
meramente organizacional e produtiva, procurando manter sua equipe motivada e com alto desempenho, mas através do que nos diz a pesquisadora Flávia Lana Garcia de Oliveira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro no seu artigo Do inconsciente freudiano à hegemonia do significante em Lacan: uma articulação entre sintoma, desejo e estrutura (2011), podemos perceber a complexidade de percepção a que uma figura dessa pode estar sendo submetida:
“(...) a lacuna significante imposta pelo Outro é vertiginosa para o sujeito. A
fantasia se impõe como sua principal resposta ao desejo: ao mesmo tempo em que tampona a falta e mantém o regime da demanda no inconsciente, é uma organização que estrutura as relações do sujeito com a realidade.”
Não é à toa que ambiente profissional é um profícuo terreno para desenvolvimento de sintomas dos mais diversos, físicos e emocionais. O “colega de trabalho”, o “chefe”, podem assumir um lugar consideravelmente angustiante para o sujeito, podendo se tornar significados pendurados de faltas e de projeções.
Se formos mais a fundo e pegarmos, por exemplo, a estrutura neurótica
obsessiva, lembramos de sua relação fantasística com a autoridade paterna, e ainda que o pai do obsessivo é o pai morto, onipotente e proibidor. Partindo disso, conseguimos rapidamente supor possibilidades na percepção da figura do líder de uma equipe, ou até mesmo de um colega de trabalho.
Podemos lembrar ainda do declínio social da imago paterna e da foraclusão do
nome-do-pai, desenvolvidos por Lacan em sua obra. Como nos lembra Fernanda Leal em sua dissertação de mestrado O Pai ou a função paterna em Lacan de A Família (2010) à sombra desses conceitos, podemos concluir que há impedimento da substituição e do deslocamento na fala do sujeito. A ausência da operação da função paterna prejudica o endereçamento ao outro, o que leva a total inabilidade de se operar com o terceiro em sua fala, ficando-se restrito a um discurso narcísico de certeza. Esse discurso, sem endereçamento e função, aparece claramente em muitos dos sintomas da contemporaneidade, inclusive na inconsistência das realizações em equipe dentro de ambientes organizacionais.
Talvez ainda estejamos a alguns passos da inserção da leitura psicanalítica
voltada para o sujeito organizacional. Talvez isso seja impossível, pois conhecemos a quantidade e a natureza dos argumentos que poderiam ir contra esse diálogo da psicanálise com o mecanismo organizacional e a dinâmica do sujeito inserido no mesmo. Mas não é impossível que, assumindo um formato a ser discutido futuramente, seja inserido em conversas de feedback, seja fazendo parte do processo de seleção, seja oferecendo escuta individual dentro da empresa, a ótica psicanalítica tenha algo a oferecer na compreensão e no aumento da satisfação e da produtividade dentro do ambiente organizacional.
MELANIE SALGADO, psicanalista membro do ILPC
pedagoga, especialista em literatura e RH.
Julho de 2017
REFERÊNCIAS:
FREUD, S. Totem e tabu. Rio de Janeiro: Imago, 1987. v.13.
LEAL, Fernanda Andrade. Dissertação de Mestrado. O Pai ou a função paterna de
Lacan em A Família. Salvador, 2010.
OLIVEIRA, F.L.G. Do inconsciente freudiano à hegemonia do significante em Lacan:
uma articulação entre sintoma, desejo e estrutura. Fonte: Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VI, n. 12, mai. a out. 2011.
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