CORPO, SUJEITO E CONTEMPORANEIDADE
- Olivan Liger
- 13 de abr.
- 6 min de leitura
Introdução:
O corpo ganha importância para a psicanálise desde o seu início quando Freud constata no tratamento da histeria que não se trata apenas de um corpo biológico, mas de um mediador entre o psiquismo e o somático. É no corpo que se inscreve a expressão de um sofrimento psíquico quando há a impossibilidade de expressão pela via do simbólico, o corpo como possibilidade das diversas projeções do psiquismo do sujeito.
O corpo contemporâneo se apresenta de forma diferente de tempos atrás, quase sempre comlacunas que o conecta ao psiquismo do sujeito. Já não se tem um corpo, mas se é um corpo, um corpo consumível, carente de simbolização. É o corpo trabalhado nas academias, tatuado, com piercing, alargadores, perfurados, modificado por intervenções cirúrgicas, exposto numa vitrine como objeto de consumo. Um corpo em ato, inscrito pelo real, no qual pela deficiência de simbolização, se torna a via de manifestação de sintomas psíquicos diversos.
Freud afirmou que o ego é corporal, o sujeito da contemporaneidade tem no corpo um objeto de consumo, um objeto para aparentar uma perfeição inexistente e assim se tornar desejável, consumível segundo as regras do capitalismo e com isto o ego se esvazia de subjetividade fazendo com que o sujeito seja apenas mais um objeto numa vitrine.
Como explicar esse corpo contemporâneo, partindo da constatação de que a apropriação do corpo passa a existir na formação do eu, na metáfora do estádio do espelho, por volta de 2 anos de vida? Certamente podemos encontrar algumas mudanças na formação do psiquismo nas últimas décadas, mas quais foram aquelas que constituiram o corpo da contemporaneidade?
Algumas hipóteses para justificar o corpo contemporâneo:
Claude Olivenstein cria a metáfora do espelho quebrado para delinear a vida do toxicômano, entretanto pode-se pensar nessa metáfora como um desvio na formação do eu que devido a interação com outros fatores, poderá tomar rumos diferentes da toxicomania. Na metáfora do espelho quebrado ou estilhaçado, a criança adentra a primeira fase do estádio com carências que o constituiram na primeira infância, das quais pode-se citar a forma como representou ou significou particularmente a mãe, a ausência do pai, o peso da perda de um membro da família que resultaria a experiência de formação do eu como se o Outro, mediador do processo, estivesse quebrado, fissurado, estilhaçado no momento de suas identificações (OLIVENSTEIN, 1985).
A representação ou significação que a criança tenha para com a mãe não se trata meramente de um olhar visual, mas é uma representação que permite o bebê se construir. Se a representação está ausente resulta num impasse pois confronta o bebê com o olhar que não o vê, impossibilitando a identificação cristalizadora do eu (CRESPIN,2004).
As identificações que sustentam a formação o eu, na passagem pelo espelho quebrado, gera um impasse no reconhecimento do corpo como próprio criando lacunas, furos, pedaços do real que clamam por algum sentido identificatório.
A falência do nome-do-Pai implica no pai que não consegue se fazer lei devido à diversas questões dentre elas o ganho de autoridade da mãe desde que passa a compor a renda doméstica e consequentemente ganha autoridade. O pai da contemporaneidade já não sabe o seu papel no Édipo, é inundado por leis contraditórias do mundo capitalista que o ocupa todo o tempo para consumir e conquistar bens materiais. Dessa forma a metáfora paterna é amarrada de forma “frouxa”, inscrevendo o filho deficitariamente no simbólico. Na entrada na cultura, o sujeito já não reconhece o outro como par já que a inserção na linguagem por efeito do interdito paterno é o que move a participação do sujeito no laço social, não desenvolve a capacidade de empatizar, a lei é frágil para conter suas pulsões primordiais.
Corpo, sujeito e contemporaneidade:
Embora a contemporaneidade, um fenômeno macro, se faça pelos pequenos fenônenos na esfera do micro, é esmagadora para o sujeito cujo o eu e o corpo é mediado por furos do real. A crescente depreciação das leis e tradições, consequência de uma cultura sustentada pelo capitalismo, favorece vínculos superficiais orientados para o imediatismo, para tudo que é fácil. Guy Debord cunhou o termo “Sociedade do espetáculo” na qual o corpo é para consumo. Debord cita que numa emergente sociedade do espetáculo o que conta mesmo é parecer, num crescente processo de sobrevalorização da forma sobre o conteúdo supervalorizando à imagem, a aparência e a exibição. Ostentar o consumo vale mais que o próprio consumo. O sujeito da pósmodernidade está alienado pela cultura do consumo sem limites.
A prevalência economica sobre o laço social, o qual tem o estatuto de aparência e ostentação sobrepõe o “ter” sobre o “ser” resultando na degradação de valores do sujeito e no esvaziamento da subjetividade. A mídia sustentada pela dominância da aparência e de uso dos meios televisivos induz o sujeito à ilusões, criando uma realidade utópica e moldando o pensamento e comportamento do sujeito. Trata-se de um corpo midiático que faz parte de um cenário coletivo como protagonista de grandes anúncios publicitários e das redes sociais.
A contemporaneidade impõe mais do que ter, parecer, ostentar e encontra nesse tempo/espaço recursos como as drogas, as modificações na forma, que servirão como cola, adesivo para seus fragmentos. Trata-se de um tempo atual que impõe ter (ostentar) um corpo que deve consumir produtos cosméticos, adornos corporais, tatuagens, procedimentos cirúrgicos na promessa de parecer um corpo eternamente jovem e desejável (consumível). Servem para tamponar o real do espelho quebrado É um corpo em ato, em cena, via de emergência do sintoma, cujo laço social é frágil e superficial. Um corpo imaginário preenchido de próteses e marcas que prometem uma certa unidade.
É um corpo que cultua o individualismo, o imediatismo e uma pseudo onipotência como imposições da atualidade, a qual promete o corpo ideal e longevo com o uso dos recursos tecnológicos, estéticos e médicos, provocando uma nova formatação da relação sujeito-seu corpo. Um corpo solitário, de laço social frágil e superficial, advindo de uma inserção deficitária na cultura que resulta no não reconhecimento do outro e da lei como necessidade. O saber está nos aparatos tecnológicos, no bolso, não mais na tradição, não é mais o objeto do Outro, um saber solitário (MILLER, 2016).
Baumann cunhou o termo “líquido” para caracterizar a contemporaneidade, referindo-se àquilo que flui e que não tem solidez ou consistência. A liquidez dos relacionamentos é a prova incontestável de que o laço humano também é um objeto de consumo, um objeto para usufruto e gozo do outro.
O olhar do outro como testemunha confirma o valor do sujeito num registro imaginário, especular, alienando-o ao mercado. O sujeito só pode existir se faz parte das regras da atualidade, das quais destaca-se o excesso de consumo e aparência e é isto que lhe confere o estatuto de existir.
A tatuagem é uma das formas de aquisição de uma corporeidade e espacialiade diante da fragmentação da realidade. Piercings e brincos podem representar fantasias primordiais inconscientes de uma não castração. Corpos malhados podem representar a perfeição que a midia dissemina como ideal de felicidade e de desejo.
A medicalização garante o bem estar do sujeito, exime-o de seus afetos tais como a tristeza e angústia, transformando bem estar em euforia, impondo uma existência robótica e de falsa felicidade.
Conclusão:
O corpo da contemporaneidade é o corpo do real no qual se inscreve o sofrimento do sujeito pela via do ato. A negação da subjetividade, dos conflitos emocionais, a tentativa de encobrir a angustia, o vazio e a frustração cria um espaço cada vez maior entre o sujeito e seu corpo, impossibilitando assim a capacidade de representações psíquicas.
As diversas mudanças, adições e subtrações ao corpo torna o sujeito impotente diante do seu sofrimento psíquico e de seus desejos criando o vazio, uma ausência de subjetividade que se inscreve no corpo como feridas, entre elas a depressão, o pânico e os ataques ao próprio corpo (atos-sintomas) que pode-se inferir como efeitos da deficiência de inscrição no registro do simbólico e do discurso capitalista.
Referências bibliográficas:
BAUMAN, Z. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2004.
BIRMAN, J. O sujeito na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Sujeito e história, civilização brasileira, 2012.
CRESPIN, G. A clínica precoce: o nascimento do humano. São Paulo: Casa dos Psicólogos, 2004
MILLER, J.A. Em direção à adolescência. São Paulo: Opção lacaniana, 2016
OLIVENSTEIN, C. Destino do toxicômano. São Paulo: Almed, 1985
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