DO QUE TRATA O AMOR EM PSICANÁLISE
- Olivan Liger
- 14 de abr.
- 10 min de leitura
A partir do séc. XII, o amor surge na literatura ocidental vinculado à dor
e ao sofrimento humano, à promessa de felicidade.
A promessa é uma ação que pressupõe uma declaração que se anuncia a
outro ou a si mesmo que consiste numa ação futura ou intenção de dar,
cumprir, fazer algo ou dizer algo. Uma promessa é sustentada pela falta,
logo só se promete o que hoje falta.
Assim, o amor assume o estatuto de uma promessa de plenitude e
felicidade para preencher uma falta, a falta da plenitude e felicidade que
se vive na existência humana.
No discurso do amor, a felicidade e plenitude sugerem a ideia de algo
ad-eternum. Eternizar a felicidade e plenitude alcançadas num
determinado tempo de amor implica em paralisar, estagnar o tempo
para que o efeito ad-eternum possa ser sustentado, logo as histórias
terminavam na morte dos amantes ou deveriam ser finalizadas tão logo
a plenitude e o amor fossem alcançados e assim os amantes eram felizes
para sempre.
Nessa perspectiva, a pulsão e seu derivativo, o desejo devem cessar com
a morte física dos amantes ou a história que haveriam de continuar
deveria ser congelada para preservar a faísca de plenitude e felicidade
alcançada. É o momento onde a ilusão de completude narcísica se
transforma num estado permanente, passando de ilusão à realidade.
Plenitude, segundo o dicionário Aurélio é “estado do que se chama
completo, inteiro, cheio”, logo implica na não existência da falta.
Esse é o grande e inalcançável objetivo do amor: -suprir todas as faltas,
atingir um estado de nirvana, cujo resquício presente no nosso
psiquismo nos confronta com sua falta e nos impele a desejar todo o
tempo, sem parar. Um amor vinculado ao objeto a – objeto causa de
desejo
Um roteiro de provas árduas, sofrimentos intensos, peripécias e
obstáculos a vencer eram requisitos para se atingir a plenitude e a
felicidade prometida pelo amor e ao atingir um vislumbre desse estado,
era necessário interditar a história para assim, converter o amor numa
promessa de felicidade.
O amor é da ordem da falta, logo se inscreve no real pelo estatuto de um
discurso de uma promessa. O amor não pode ser definido, exceto pela
proximidade do que falam e pela dimensão do afeto pelo qual se é
tomado. Ama-se, mas não se sabe justificar ou explicar por que se ama,
simplesmente ama, sem nunca ter a certeza do que sente. Há sempre
um mais amor a alcançar.
Aquilo que se diz amor é um desejo de alcançar o inalcançável, algo da
ordem do inatingível que emerge com a inquietude de um querer mais,
querer estar mais tempo, mais perto, mais do amante como se fundir-se
ao outro fosse o ápice dessa busca. Uma ficção que logo Lacan se deu
conta.
“Porque quem ama, nunca sabe o que ama, nem sabe por que ama, nem
o que é amar” (Fernando Pessoa, Poema II, O Guardador de rebanhos)
Se busco sempre o mais amor é porque o que sinto e que denomino
amor não preenche por completo, denunciando sempre um furo que
nunca pode ser obturado.
Articulado com o desejo, o amor nunca preenche por completo, nunca
pode ser realizado, pois se assim fosse, o amado seria apreendido como
a outra metade e dois se transformariam em um. Só pode se colocar
nesse mais-além do real. Só assim pode surgir a significação do amor
infinito e sem limites, do amor sem lei, fora dos limites do simbólico.
(Lacan, Seminário 11 – Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise).
Fundir-se ao outro é algo impossível, logo o amor desembocará na
decepção e frustração.
O advento do cristianismo veio trazer uma certa desarticulação entre o
amor e o desejo e consequentemente seus destinos. No mito da criação, o criador tudo criou, do céu a terra e entre esses, colocou o homem e a
mulher no éden e instituiu a lei do fruto proibido. O casal estava
psiquicamente morto, pois na ilusão de completude narcísica, nada
desejavam. Deus fundou o desejo como agente da lei e logo veio a
serpente fundar a transgressão. O desejo é associado ao pecado original
e ao transgredirem a lei, o jovem casal se torna mortal e assexuado,
ganham vida psiquíca. A salvação é a renúncia ao desejo para conquistar
a imortalidade do espírito. No lugar do desejo, terá que emergir o amor
como recurso para a salvação, atribuindo ao desejo, à perdição.
Desejar é a origem da culpa, já que institui o pecado original. A culpa
conduzirá ao arrependimento que demandará o sacrifício do desejo.
Entra em cena o amor com a finalidade de suprir a falta que não pode
ser satisfeita. Assim o amor fica vinculado ao desejo e a falta, com a
promessa dessa última suprir e evidenciando sua estrutura de ficção.
Inatingível, único, exclusivo, é também narcísico pois visa a própria
realização do desejo de plenitude, de tornar-se inteiro através do Outro,
confundindo-se, fundindo-se com o amado idealizado como parte que
completa. Como esse objeto idealizado não existe, o desejo não pode
ser realizado, por isso o homem é, em essência, um ser desejante e se
ama, ama o não-todo, o que não completa.
O amor se faz pelo discurso de sofrimento, angustia e inquietude, assim
se tornando um sintoma que gera gozo. Gozo não é prazer, está além do
princípio de prazer, é a força que faz a manutenção do sintoma, é o
excesso. Embora o sofrimento, a angústia e inquietude gerem desprazer,
não é um impeditivo para que se extraia daí o gozo.
O gozo é experimentado pelo “Amor infeliz” que abarcou a literatura
ocidental, no qual os amantes, tomados pelo gozo, sofrem e morrem de
amor e por amor. Ama-se para desejar ou para gozar com o sofrimento.
Além de articulado com o desejo, o amor também se articula com o
gozo.
A eleição de um objeto amado, o efeito de unidade no campo do Outro,
leva o eu ao estatuto de singular no campo da intersubjetividade,
contrapondo-se ao desejo sexual que carrega em si a parcialidade
pulsional que no amor só pode ter um único destino, o objeto amado
eleito. O amor surge nas vias de um desejo que singulariza aquele que
deseja.
O conceito de amor para Freud está fundamentado nos primórdios do
desenvolvimento e antagonicamente vinculado ao ódio.
Dois textos nos falam das formas de amor para Freud –“Sobre o
narcisismo: uma introdução” (1914) e “As pulsões e suas
vicissitudes”(1915).
Freud deixa claro que o ódio é mais antigo que o amor. Só existe ódio
primordialmente, em relação ao objeto – mais precisamente: o mundo
como indiferente. É no lugar de uma ausência de relação, ausência de
qualquer forma relacional – narcisismo: o bebê auto-eroticamente
investido -, que se apreende a noção de ódio. O que é próprio ao amor
virá depois, quando a libido empreender um deslocamento à fase objetal. O amor deriva da capacidade do bebê se satisfazer auto- eroticamente. É originalmente narcisista, passando em seguida, a se vincular com os objetos que foram incorporados ao eu, objetos fontes
de prazer. Se uma relação de amor com um dado objeto for rompida,
frequentemente surgirá o ódio em seu lugar, de modo a parecer uma
transformação do amor em ódio... uma regressão do amor... desta
forma, o ódio adquire um caráter erótico.
Freud retoma o narcisismo primário, quando o bebê e o mundo exterior
lhe parecem extensão de si mesmo, no momento em que as pulsões
auto-conservadoras e as pulsões do eu se misturam e ai fundamenta o
amor narcísico. Um amor que busca o que o sujeito é, o que foi e o que
gostaria de ser.
Mais tarde, quando as pulsões de auto-conservação e as pulsões do eu
são separadas, momento este em que o bebê faz o reconhecimento de
objetos externos como fonte de prazer, origina-se então uma nova
forma de amor; a escolha do objeto amoroso que traz o modelo das
funções paternas e maternas, ou seja ama-se a mulher que alimenta ou
o homem que protege.
Obviamente essas formas de busca do objeto se mesclam durante toda a
existência e variam de acordo com o organismo, sua história precoce e
cultura.
Ainda sobre a escolha narcísica, no texto de 1914, Freud fala que
aqueles que renunciaram a uma parte do seu narcisismo se lançam a
procura do amor, transferindo seu narcisismo para o objeto amado.
Se o narcisismo é a supervalorização de si mesmo, entra em cena o amor
como paixão: a supervalorização do objeto amado, já que parte do
narcisismo é deslocado para o amado.
Alguns anos depois, em 1921, no texto “Psicologia de grupo e análise de
ego”, Freud retoma novamente a questão da valorização do objeto
amado com base na diferença entre idealização e identificação.
A idealização, como superinvestimento do amado à custa do amante é
retomada por uma nova abordagem: o objeto amado é colocado no
lugar do ideal de ego. O ideal de ego , a grosso modo, é a aspiração
daquilo que deve ser ou atingir para obter o reconhecimento e aceitação
do mundo exterior. Quando o objeto amado toma esse lugar, dá-se a ele
e somente a ele a função de reconhecimento e aceitação. O objeto
amado passa a representar todo o mundo exterior. O que resta então? A
ausência de auto-estima, humildade e reverência.
A identificação é a forma mais primitiva e original de laços afetivos com
o objeto. É a forma que faz com que o amante copie, imite ou queira ser
igual, assumindo características do amado como se fossem suas.
Incorpora-se o outro.
Podemos observar a identificação nos versos de Camões:
“Transforma-se o amador na cousa amada,/ por virtude do muito
imaginar;/ não tenho, logo, mais que desejar,/ pois em mi tenho a parte
desejada.”
A identificação é uma forma narcísica de busca do objeto amado,
quando as pulsões ainda se misturavam.
O narcisismo primário é uma das característica da pulsão oral; da
incorporação dos objetos amados pela boca, da fantasia de
incorporação como antropofagia. Incorpora-se primeiramente as fontes
de prazer (o objeto amado, o seio bom) e rejeita-se, destrói na fantasia
os objetos que causam desprazer (o seio mau). É válido então pensar
numa equação onde amar é igual devorar e está para odiar igual a
rejeitar.
Se o objeto amado é da ordem do humano, é portador de prazer e
desprazer, de qualidades e defeitos, do bom e do ruim. Logo, o amor
assume um traço de ambivalência: Amamos o que é bom e odiamos os
defeitos.
Na pulsão anal, quando pulsões do ego e de auto-conservação são separadas, a qual começa ainda na fase oral, na etapa oral sádico-canibal, estabelece-se o início da fase objetal... a busca do objetoamoroso externo. A mãe é o sujeito da relação, mas também serve como objeto na função alimentar. A criança, por sua dependência materna é o objeto dessa relação.
A pulsão anal tem como característica a comunicação do interno para o
externo ( do intestino às fezes). As fezes tem o valor de dom, de afeto. A
criança se oferece para ser amada e precisa ser reconhecida pelo outro.
O reconhecimento de seu produto, as fezes, é uma prova de amor. Logo
amar tem o significado de ser amado pelo outro. Na fase anal, a mãe
passa a ser o pedinte da relação, enquanto que a criança passa a sentir
que tem o poder de dar ou não o que é pedido pela mãe – Para Lacan
esse momento é o marco do nascimento do sujeito.
A pulsão fálica, que se insere no Édipo, entra o pai com a função de fazer
valer a lei, o interdito do primeiro objeto de amor: a mãe. Aqui se
estabelece claramente o sentimento de culpa originado pelo desejo
inconsciente de eliminar o rival (o pai). Vincula-se aqui o amor e o ódio.
Do amor narcísico, Freud teoriza que amor e ódio são faces de uma
mesma moeda. O amor é companheiro do ódio; a vida é companheira da
morte; Eros é companheiro de Thanatos; um não pode existir sem o
outro.
A verdade na psicanálise é a verdade do desejo, o desejo como fruto da
pulsão é da ordem de Eros. Se Eros é a busca do prazer, do desejo e do
amor, cada sujeito terá uma uma relação peculiar e única com sua
verdade, ou seja com seu desejo, daí Lacan afirma que o amor e a
verdade são estruturas de ficção, de ilusão, de discurso criado e
sustentado pelo sujeito.
O sujeito existe em função de Eros, de se tornar desejante, desejar o
amor. O amor é a afirmação de ser e da vida. Quando a vida está
ameaçada, prestes a se extinguir, resta a declaração de amor – falar de
amor por si só é um gozo – o gozo dos poetas. A maioria das mensagens
de celulares das pessoas nas torres gêmeas do 11 de Setembro, antes de
se atirarem pelas janelas era: I love you.
Para Freud, o amor nasce da relação do bebê consigo mesmo, o
narcisismo primário, cujo objetivo é a satisfação imediata do seu desejo.
Num segundo momento, o bebê reconhece o outro e constrói relações
objetais. Os objetos amorosos podem ter uma finalidade narcísica ou
anaclítica. Por estar aquém de uma satisfação total, o amor é
ambivalente, comporta amor e ódio ao mesmo tempo e sempre conduz
à frustração e à decepção. Estas formas de amar primordiais serão
sempre reconstruídas ao longo da vida e na análise através da
transferência.
A transferência é a atualização, a repetição dos vínculos vividos desde o
ínicio da existência... O amor demandado é narcísico desde que se
inscreve como um amor que demanda o reconhecimento, o amor
romântico que requer trocas. É uma tentativa de repetição da posição
do analisando em relação ao Outro. Entretanto o analista não se oferece
como amante e se faz como presença do analista, tornando-se ausente
como sujeito. Ao se apagar enquanto sujeito, o analista faz surgir a
relação existente entre o sujeito e o outro que o constituiu.
A história erótica do sujeito se repete, mas uma resposta nova, algo
novo ocorre na transferência, colocando o sujeito frente ao seu desejo.
O sujeito ama o suposto saber do analista, para assim saber do seu
desejo, deixando assim entrever a falta. Descobre que é o seu próprio
desejo que está em cena em sua relação com o outro e não o desejo do
Outro. Assim o que era amor volta ao lugar do desejo.
O Amor é dar o que não se tem (a alguém que não o quer), como Lacan
assim o concebe, porque o que se tem é a falta, o nada que supõe-se
que o Outro tem algo para cobrir, preencher e tamponá-la, entretanto o
outro está na mesma posição, tem o nada... não quer o nada do amante,
a sua falta, ele deseja o que o amante também deseja e por isso o amor
não pode se completar...o amor sempre existirá enquanto desejo, jamais
como algo completo.
Para terminar, vou citar Baudelaire quando diz que: -se começo (e
termino) pelo amor, é que o amor é, para todos por mais que o neguem,
- a grande coisa da vida. Embora uma estrutura de ficção, o amor é que
faz o sujeito mover-se na vida com um certo equilibrio psíquico. É a força
motriz da manutenção do psiquismo, logo necessário e vital na
existência do ser.
Bibliografia:
FERREIRA, N.P., Teorias do Amor. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
2004
LOPES, M.M.F. Conceito de Amor em Psicanálise. São Paulo:
Centauro editora, 2009.
MARTINEZ, M.D.C; RAVANELO, T. A resposta do psicanalista: uma
via do amor e da verdade.
NETTO, G.A.F.N. O amor é dar o que não se tem (a alguém que
não o quer) disponível em
PISETA, M.A.A.M., Metáfora e real no amor: os destinos do amor
na clínica psicanalítica. Revista Diversa, ano1, no 2, pp 147 a 157,
Julho/Dezembro, 2008
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