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DO QUE TRATA O AMOR EM PSICANÁLISE

A partir do séc. XII, o amor surge na literatura ocidental vinculado à dor

e ao sofrimento humano, à promessa de felicidade.


A promessa é uma ação que pressupõe uma declaração que se anuncia a

outro ou a si mesmo que consiste numa ação futura ou intenção de dar,

cumprir, fazer algo ou dizer algo. Uma promessa é sustentada pela falta,

logo só se promete o que hoje falta.


Assim, o amor assume o estatuto de uma promessa de plenitude e

felicidade para preencher uma falta, a falta da plenitude e felicidade que

se vive na existência humana.


No discurso do amor, a felicidade e plenitude sugerem a ideia de algo

ad-eternum. Eternizar a felicidade e plenitude alcançadas num

determinado tempo de amor implica em paralisar, estagnar o tempo

para que o efeito ad-eternum possa ser sustentado, logo as histórias

terminavam na morte dos amantes ou deveriam ser finalizadas tão logo

a plenitude e o amor fossem alcançados e assim os amantes eram felizes

para sempre.


Nessa perspectiva, a pulsão e seu derivativo, o desejo devem cessar com

a morte física dos amantes ou a história que haveriam de continuar

deveria ser congelada para preservar a faísca de plenitude e felicidade

alcançada. É o momento onde a ilusão de completude narcísica se

transforma num estado permanente, passando de ilusão à realidade.

Plenitude, segundo o dicionário Aurélio é “estado do que se chama

completo, inteiro, cheio”, logo implica na não existência da falta.

Esse é o grande e inalcançável objetivo do amor: -suprir todas as faltas,

atingir um estado de nirvana, cujo resquício presente no nosso

psiquismo nos confronta com sua falta e nos impele a desejar todo o

tempo, sem parar. Um amor vinculado ao objeto a – objeto causa de

desejo


Um roteiro de provas árduas, sofrimentos intensos, peripécias e

obstáculos a vencer eram requisitos para se atingir a plenitude e a

felicidade prometida pelo amor e ao atingir um vislumbre desse estado,

era necessário interditar a história para assim, converter o amor numa

promessa de felicidade.


O amor é da ordem da falta, logo se inscreve no real pelo estatuto de um

discurso de uma promessa. O amor não pode ser definido, exceto pela

proximidade do que falam e pela dimensão do afeto pelo qual se é

tomado. Ama-se, mas não se sabe justificar ou explicar por que se ama,

simplesmente ama, sem nunca ter a certeza do que sente. Há sempre

um mais amor a alcançar.


Aquilo que se diz amor é um desejo de alcançar o inalcançável, algo da

ordem do inatingível que emerge com a inquietude de um querer mais,

querer estar mais tempo, mais perto, mais do amante como se fundir-se

ao outro fosse o ápice dessa busca. Uma ficção que logo Lacan se deu

conta.


“Porque quem ama, nunca sabe o que ama, nem sabe por que ama, nem

o que é amar” (Fernando Pessoa, Poema II, O Guardador de rebanhos)


Se busco sempre o mais amor é porque o que sinto e que denomino

amor não preenche por completo, denunciando sempre um furo que

nunca pode ser obturado.


Articulado com o desejo, o amor nunca preenche por completo, nunca

pode ser realizado, pois se assim fosse, o amado seria apreendido como

a outra metade e dois se transformariam em um. Só pode se colocar

nesse mais-além do real. Só assim pode surgir a significação do amor

infinito e sem limites, do amor sem lei, fora dos limites do simbólico.

(Lacan, Seminário 11 – Os quatro conceitos fundamentais da

psicanálise).


Fundir-se ao outro é algo impossível, logo o amor desembocará na

decepção e frustração.


O advento do cristianismo veio trazer uma certa desarticulação entre o

amor e o desejo e consequentemente seus destinos. No mito da criação, o criador tudo criou, do céu a terra e entre esses, colocou o homem e a

mulher no éden e instituiu a lei do fruto proibido. O casal estava

psiquicamente morto, pois na ilusão de completude narcísica, nada

desejavam. Deus fundou o desejo como agente da lei e logo veio a

serpente fundar a transgressão. O desejo é associado ao pecado original

e ao transgredirem a lei, o jovem casal se torna mortal e assexuado,

ganham vida psiquíca. A salvação é a renúncia ao desejo para conquistar

a imortalidade do espírito. No lugar do desejo, terá que emergir o amor

como recurso para a salvação, atribuindo ao desejo, à perdição.

Desejar é a origem da culpa, já que institui o pecado original. A culpa

conduzirá ao arrependimento que demandará o sacrifício do desejo.

Entra em cena o amor com a finalidade de suprir a falta que não pode

ser satisfeita. Assim o amor fica vinculado ao desejo e a falta, com a

promessa dessa última suprir e evidenciando sua estrutura de ficção.


Inatingível, único, exclusivo, é também narcísico pois visa a própria

realização do desejo de plenitude, de tornar-se inteiro através do Outro,

confundindo-se, fundindo-se com o amado idealizado como parte que

completa. Como esse objeto idealizado não existe, o desejo não pode

ser realizado, por isso o homem é, em essência, um ser desejante e se

ama, ama o não-todo, o que não completa.


O amor se faz pelo discurso de sofrimento, angustia e inquietude, assim

se tornando um sintoma que gera gozo. Gozo não é prazer, está além do

princípio de prazer, é a força que faz a manutenção do sintoma, é o

excesso. Embora o sofrimento, a angústia e inquietude gerem desprazer,

não é um impeditivo para que se extraia daí o gozo.


O gozo é experimentado pelo “Amor infeliz” que abarcou a literatura

ocidental, no qual os amantes, tomados pelo gozo, sofrem e morrem de

amor e por amor. Ama-se para desejar ou para gozar com o sofrimento.

Além de articulado com o desejo, o amor também se articula com o

gozo.


A eleição de um objeto amado, o efeito de unidade no campo do Outro,

leva o eu ao estatuto de singular no campo da intersubjetividade,

contrapondo-se ao desejo sexual que carrega em si a parcialidade

pulsional que no amor só pode ter um único destino, o objeto amado

eleito. O amor surge nas vias de um desejo que singulariza aquele que

deseja.


O conceito de amor para Freud está fundamentado nos primórdios do

desenvolvimento e antagonicamente vinculado ao ódio.

Dois textos nos falam das formas de amor para Freud –“Sobre o

narcisismo: uma introdução” (1914) e “As pulsões e suas

vicissitudes”(1915).

Freud deixa claro que o ódio é mais antigo que o amor. Só existe ódio

primordialmente, em relação ao objeto – mais precisamente: o mundo

como indiferente. É no lugar de uma ausência de relação, ausência de

qualquer forma relacional – narcisismo: o bebê auto-eroticamente

investido -, que se apreende a noção de ódio. O que é próprio ao amor

virá depois, quando a libido empreender um deslocamento à fase objetal. O amor deriva da capacidade do bebê se satisfazer auto- eroticamente. É originalmente narcisista, passando em seguida, a se vincular com os objetos que foram incorporados ao eu, objetos fontes


de prazer. Se uma relação de amor com um dado objeto for rompida,

frequentemente surgirá o ódio em seu lugar, de modo a parecer uma

transformação do amor em ódio... uma regressão do amor... desta

forma, o ódio adquire um caráter erótico.


Freud retoma o narcisismo primário, quando o bebê e o mundo exterior

lhe parecem extensão de si mesmo, no momento em que as pulsões

auto-conservadoras e as pulsões do eu se misturam e ai fundamenta o

amor narcísico. Um amor que busca o que o sujeito é, o que foi e o que

gostaria de ser.


Mais tarde, quando as pulsões de auto-conservação e as pulsões do eu

são separadas, momento este em que o bebê faz o reconhecimento de

objetos externos como fonte de prazer, origina-se então uma nova

forma de amor; a escolha do objeto amoroso que traz o modelo das

funções paternas e maternas, ou seja ama-se a mulher que alimenta ou

o homem que protege.


Obviamente essas formas de busca do objeto se mesclam durante toda a

existência e variam de acordo com o organismo, sua história precoce e

cultura.


Ainda sobre a escolha narcísica, no texto de 1914, Freud fala que

aqueles que renunciaram a uma parte do seu narcisismo se lançam a

procura do amor, transferindo seu narcisismo para o objeto amado.


Se o narcisismo é a supervalorização de si mesmo, entra em cena o amor

como paixão: a supervalorização do objeto amado, já que parte do

narcisismo é deslocado para o amado.


Alguns anos depois, em 1921, no texto “Psicologia de grupo e análise de

ego”, Freud retoma novamente a questão da valorização do objeto

amado com base na diferença entre idealização e identificação.


A idealização, como superinvestimento do amado à custa do amante é

retomada por uma nova abordagem: o objeto amado é colocado no

lugar do ideal de ego. O ideal de ego , a grosso modo, é a aspiração

daquilo que deve ser ou atingir para obter o reconhecimento e aceitação

do mundo exterior. Quando o objeto amado toma esse lugar, dá-se a ele

e somente a ele a função de reconhecimento e aceitação. O objeto

amado passa a representar todo o mundo exterior. O que resta então? A

ausência de auto-estima, humildade e reverência.


A identificação é a forma mais primitiva e original de laços afetivos com

o objeto. É a forma que faz com que o amante copie, imite ou queira ser

igual, assumindo características do amado como se fossem suas.

Incorpora-se o outro.

Podemos observar a identificação nos versos de Camões:

“Transforma-se o amador na cousa amada,/ por virtude do muito

imaginar;/ não tenho, logo, mais que desejar,/ pois em mi tenho a parte

desejada.”


A identificação é uma forma narcísica de busca do objeto amado,

quando as pulsões ainda se misturavam.

O narcisismo primário é uma das característica da pulsão oral; da

incorporação dos objetos amados pela boca, da fantasia de

incorporação como antropofagia. Incorpora-se primeiramente as fontes

de prazer (o objeto amado, o seio bom) e rejeita-se, destrói na fantasia

os objetos que causam desprazer (o seio mau). É válido então pensar

numa equação onde amar é igual devorar e está para odiar igual a

rejeitar.


Se o objeto amado é da ordem do humano, é portador de prazer e

desprazer, de qualidades e defeitos, do bom e do ruim. Logo, o amor

assume um traço de ambivalência: Amamos o que é bom e odiamos os

defeitos.


Na pulsão anal, quando pulsões do ego e de auto-conservação são separadas, a qual começa ainda na fase oral, na etapa oral sádico-canibal, estabelece-se o início da fase objetal... a busca do objetoamoroso externo. A mãe é o sujeito da relação, mas também serve como objeto na função alimentar. A criança, por sua dependência materna é o objeto dessa relação.


A pulsão anal tem como característica a comunicação do interno para o

externo ( do intestino às fezes). As fezes tem o valor de dom, de afeto. A

criança se oferece para ser amada e precisa ser reconhecida pelo outro.

O reconhecimento de seu produto, as fezes, é uma prova de amor. Logo

amar tem o significado de ser amado pelo outro. Na fase anal, a mãe


passa a ser o pedinte da relação, enquanto que a criança passa a sentir

que tem o poder de dar ou não o que é pedido pela mãe – Para Lacan

esse momento é o marco do nascimento do sujeito.


A pulsão fálica, que se insere no Édipo, entra o pai com a função de fazer

valer a lei, o interdito do primeiro objeto de amor: a mãe. Aqui se

estabelece claramente o sentimento de culpa originado pelo desejo

inconsciente de eliminar o rival (o pai). Vincula-se aqui o amor e o ódio.


Do amor narcísico, Freud teoriza que amor e ódio são faces de uma

mesma moeda. O amor é companheiro do ódio; a vida é companheira da

morte; Eros é companheiro de Thanatos; um não pode existir sem o

outro.


A verdade na psicanálise é a verdade do desejo, o desejo como fruto da

pulsão é da ordem de Eros. Se Eros é a busca do prazer, do desejo e do

amor, cada sujeito terá uma uma relação peculiar e única com sua

verdade, ou seja com seu desejo, daí Lacan afirma que o amor e a

verdade são estruturas de ficção, de ilusão, de discurso criado e

sustentado pelo sujeito.


O sujeito existe em função de Eros, de se tornar desejante, desejar o

amor. O amor é a afirmação de ser e da vida. Quando a vida está

ameaçada, prestes a se extinguir, resta a declaração de amor – falar de

amor por si só é um gozo – o gozo dos poetas. A maioria das mensagens

de celulares das pessoas nas torres gêmeas do 11 de Setembro, antes de

se atirarem pelas janelas era: I love you.



Para Freud, o amor nasce da relação do bebê consigo mesmo, o

narcisismo primário, cujo objetivo é a satisfação imediata do seu desejo.

Num segundo momento, o bebê reconhece o outro e constrói relações

objetais. Os objetos amorosos podem ter uma finalidade narcísica ou

anaclítica. Por estar aquém de uma satisfação total, o amor é

ambivalente, comporta amor e ódio ao mesmo tempo e sempre conduz

à frustração e à decepção. Estas formas de amar primordiais serão

sempre reconstruídas ao longo da vida e na análise através da

transferência.


A transferência é a atualização, a repetição dos vínculos vividos desde o

ínicio da existência... O amor demandado é narcísico desde que se

inscreve como um amor que demanda o reconhecimento, o amor

romântico que requer trocas. É uma tentativa de repetição da posição

do analisando em relação ao Outro. Entretanto o analista não se oferece

como amante e se faz como presença do analista, tornando-se ausente

como sujeito. Ao se apagar enquanto sujeito, o analista faz surgir a

relação existente entre o sujeito e o outro que o constituiu.


A história erótica do sujeito se repete, mas uma resposta nova, algo

novo ocorre na transferência, colocando o sujeito frente ao seu desejo.

O sujeito ama o suposto saber do analista, para assim saber do seu

desejo, deixando assim entrever a falta. Descobre que é o seu próprio

desejo que está em cena em sua relação com o outro e não o desejo do

Outro. Assim o que era amor volta ao lugar do desejo.


O Amor é dar o que não se tem (a alguém que não o quer), como Lacan

assim o concebe, porque o que se tem é a falta, o nada que supõe-se

que o Outro tem algo para cobrir, preencher e tamponá-la, entretanto o

outro está na mesma posição, tem o nada... não quer o nada do amante,

a sua falta, ele deseja o que o amante também deseja e por isso o amor

não pode se completar...o amor sempre existirá enquanto desejo, jamais

como algo completo.


Para terminar, vou citar Baudelaire quando diz que: -se começo (e

termino) pelo amor, é que o amor é, para todos por mais que o neguem,

- a grande coisa da vida. Embora uma estrutura de ficção, o amor é que

faz o sujeito mover-se na vida com um certo equilibrio psíquico. É a força

motriz da manutenção do psiquismo, logo necessário e vital na

existência do ser.


 

Bibliografia:


  • FERREIRA, N.P., Teorias do Amor. Rio de Janeiro: Zahar Editores,

2004

  • LOPES, M.M.F. Conceito de Amor em Psicanálise. São Paulo:

Centauro editora, 2009.

  • MARTINEZ, M.D.C; RAVANELO, T. A resposta do psicanalista: uma

via do amor e da verdade.

  • NETTO, G.A.F.N. O amor é dar o que não se tem (a alguém que

não o quer) disponível em


  • PISETA, M.A.A.M., Metáfora e real no amor: os destinos do amor

na clínica psicanalítica. Revista Diversa, ano1, no 2, pp 147 a 157,

Julho/Dezembro, 2008

 
 
 

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