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VIGOREXIA COMO SINTOMA EMERGENTE NA CONTEMPORANEIDADE

 

Olivan Liger de Oliveira

ILPC – Instituto Latino americano de Psicanálise Contemporânea

olivanliger@gmail.com

 

 

 

 

Resumo:

Este artigo explora a emergência da vigorexia — também conhecida como dismorfia muscular — como sintoma psíquico-cultural característico da contemporaneidade. A partir de uma abordagem psicanalítica, analisa-se como a cultura do narcisismo, o culto à imagem e as exigências de performance corporal contribuem para a constituição desse quadro clínico. O texto também discute os desafios que essa nova forma de sofrimento impõe à clínica atual e propõe reflexões sobre estratégias terapêuticas possíveis para a escuta e o tratamento do sujeito vigoréxico.

 

Abstract:

This article explores the emergence of vigorexia — also known as muscle dysmorphia — as a psycho-cultural symptom characteristic of contemporary society. From a psychoanalytic perspective, it examines how narcissistic culture, body image idealization, and performance demands contribute to the development of this clinical condition. The text also discusses the challenges this new form of suffering presents to current clinical practice and proposes reflections on possible therapeutic strategies for listening to and treating the vigorexic subject.

 

Palavras chave: vigorexia, distubio corporal, transtorno dismórfico corporal, sujeito-corpo

Keywords: vigorexia, body disturbance, body dysmorphic disorder, body-subject

 

 

Introdução:

 

Alguns autores definem a contemporaneidade como um tempo de demandas excessivas sobre o sujeito. Zygmunt Bauman (2001) e Gilles Lipovetsky (2004) destacam algumas de suas principais características: Individualismo exacerbado e fragilidade dos vínculos sociais; Aceleração do tempo e cultura da urgência; Sociedade do desempenho e da produtividade; Predominância da imagem e da aparência; Crise das instituições tradicionais, como família, religião e Estado; Flexibilidade identitária e pluralidade de estilos de vida e ainda a mercantilização da vida e das relações sociais. Diante de tantas demandas, novos sintomas surgem e assim convoca a psicanálise a buscar recursos para lidar com as patologias contemporâneas.

A predominância da imagem e da aparência faz do corpo projeto e capital simbólico, promovendo pressões por perfeição física, sucesso estético e exposição contínua nas redes. (Lipovetsky, 2004.)

O corpo é a expressão de um simbólico precário e ineficiente, assim observa-se um sujeito-corpo ao invés de um sujeito-eu. Dentre os novos sintomas emergentes, observa-se uma obsessão por um corpo idealizado e inalcançável. Trata-se da vigorexia.

Segundo Pope, Phillips e Olivardia (2000), pioneiros na definicão da vigorexia, trata-se de um de transtorno dismórfico corporal em que o indivíduo, mesmo fisicamente musculoso, se percebe pequeno e fraco. Essa percepção distorcida leva à compulsão por treinos intensos, dietas rigorosas e uso de substâncias anabolizantes.

Sob um enfoque biomédico, Campos, Telles e Silva (2008) descreve a vigorexia como uma alteração do comportamento em que o indivíduo, insatisfeito com seu corpo, desenvolve uma busca compulsiva por hipertrofia muscular, colocando em risco sua saúde física e psíquica.

Numa perspectiva sociológica, Bauman (2001) diz que na sociedade de consumo, o corpo passa a ser moldado como projeto individual de valor. A vigorexia é uma resposta patológica à pressão por performance e aparência, revelando a internalização de ideais sociais inatingíveis.

A psicologia clínica vincula a patologia com a masculinidade, citando que a dismorfia muscular compartilha traços com transtornos alimentares, sendo sua principal característica a obsessão com o volume e definição muscular, impulsionada por normas culturais de masculinidade.

 

Diagnóstico diferencial:

 

A prática saudável da hipertrofia muscular envolve objetivos claros (ex: melhorar força, saúde ou estética) sem prejuízo psicológico ou social; A rotina de treinos e alimentação está integrada à vida cotidiana, sem causar isolamento ou sofrimento psíquico e o indivíduo reconhece seus limites corporais e respeita períodos de descanso.

Quando trata-se da Vigorexia (ou dismorfia muscular), há a distorção da autoimagem: o sujeito se vê pequeno ou fraco mesmo sendo musculoso; O treino se torna compulsivo, afetando a vida social, profissional e afetiva; Comportamentos de risco são comuns, como o uso abusivo de anabolizantes e dietas extremas e o foco no corpo torna-se central na identidade e autoestima.

 

A psicodinâmica do sujeito vigoréxico:

 

A dinâmica psíquica do sujeito vigoréxico, sob a ótica da psicanálise, revela um funcionamento marcado por conflitos profundos ligados à constituição do eu, à imagem corporal e à relação com o ideal do eu. A vigorexia, entendida não apenas como um transtorno comportamental, mas como uma forma contemporânea de sofrimento psíquico, pode ser analisada como expressão de um mal-estar narcísico e de uma tentativa de tamponamento de falhas estruturais do sujeito.

Segundo Freud, o corpo é o primeiro objeto de investimento libidinal no narcisismo primário. A imagem corporal, nesse sentido, é constituída no campo do desejo do Outro. A distorção dessa imagem – como ocorre na vigorexia – evidencia uma fragilidade narcísica, em que o corpo torna-se um "suporte imaginário do eu".“A formação do eu passa pela imagem corporal. A insatisfação obsessiva com o corpo revela um eu instável, incapaz de lidar com a castração.” (FREUD, 1914)

Françoise Dolto também contribui ao conceber o "corpo-imagem" como uma construção psíquica. Para ela, distúrbios na imagem corporal refletem falhas na simbolização e na estruturação do sujeito.

Jacques Lacan, ao reformular a teoria do narcisismo, destaca a importância do Ideal do Eu (I) e do estádio do espelho. O sujeito vigoréxico estaria preso a uma imagem idealizada, perpetuamente inatingível, que lhe é imposta pelo Outro social (mídia, cultura, performance).“O sujeito, na vigorexia, tenta preencher uma falta estrutural através da hipertrofia do corpo-imagem, respondendo a um supereu tirânico que exige: ‘seja perfeito, seja forte’.(LACAN, 1953-1954)

Esse supereu contemporâneo não mais proíbe, mas ordena gozar (Byung-Chul Han), mantendo o sujeito em constante exaustão e inadequação.

Para o psicanalista brasileiro Joel Birman, as patologias do corpo na contemporaneidade (como a vigorexia) expressam um deslocamento da angústia para o corpo visível. O sujeito contemporâneo, “órfão de referências simbólicas estáveis”, tenta inscrever sentido no corpo: “O corpo hipertrofiado é uma armadura narcísica contra o desamparo, uma tentativa de tamponar a falta e o vazio constitutivo.”(BIRMAN, 2001).

Constata-se que a vigorexia é uma tentativa de tamponar um eu fragmentado ou vazio e uma tentativa de atingir o corpo idealizado pela cultura, corpo esse inalcançável, segundo a definição dos autores acima, condizente com uma contemporaneidade de excessos.


 

A clínica do vigoréxico:

Segundo Joel Birman (2001), o vigoréxico geralmente chega à clínica não pelo sintoma em si, mas por colapsos adjacentes: isolamento social, depressão, crises de identidade ou uso abusivo de anabolizantes. O primeiro passo é ouvir o sujeito para além da queixa manifesta, acolhendo a angústia que sustenta o sintoma corporal.

“A clínica com esses sujeitos exige escuta flutuante e paciência interpretativa, pois o corpo tornou-se o lugar principal de inscrição psíquica.”(Birman, 2001)

A clínica precisa trabalhar as identificações imaginárias rígidas que sustentam o ideal corporal inatingível. Como aponta Françoise Dolto (2010), a distorção da imagem corporal revela uma falha na constituição simbólica do eu e exige que o tratamento reenquadre o corpo como lugar de fala, e não apenas de forma: “É preciso devolver ao sujeito seu corpo como linguagem, e não como vitrine.”(Dolto, 2010)

Lacan enfatiza que toda clínica psicanalítica implica trabalho com a falta. No vigoréxico, o corpo tenta negar a castração pela via da onipotência muscular. A clínica visa a possibilitar o luto do corpo idealizado, permitindo ao sujeito tolerar o inacabamento, o limite e o desejo. “A cura não é o desaparecimento do sintoma, mas o reposicionamento subjetivo frente ao desejo do Outro.” (Lacan, 1953-54)

A prática clínica do vigoréxico convoca um trabalho multidisciplinar envolvendo acompanhamento psiquiátrico: nos casos em que há comorbidades como depressão ou ansiedade generalizada; Orientação nutricional e médica: para conter o uso de anabolizantes e reequilibrar práticas corporais.

Como destaca Grieve (2007), o sucesso terapêutico depende de construir uma aliança terapêutica que desestabilize o sistema de crenças distorcidas sobre o corpo.“A resistência ao tratamento é alta, pois o sujeito crê que está saudável. Por isso, o vínculo terapêutico é tão crucial.” (Grieve, 2007)

Considerações Finais:

A vigorexia, longe de ser apenas um distúrbio corporal ou estético, se configura como um sintoma psíquico-cultural profundamente enraizado na subjetividade contemporânea. No cenário da cultura narcísica, como analisado por autores como Christopher Lasch (1979), Joel Birman (2001) e Byung-Chul Han (2017), o sujeito é convocado a sustentar uma imagem ideal de si — forte, performático, incansável — mesmo às custas do esgotamento físico e psíquico.

A emergência da vigorexia está diretamente ligada a esse imperativo: "deves ser teu próprio projeto", "teu corpo é tua marca", "não mostres tua fragilidade". O corpo hipertrofiado passa a representar uma armadura narcísica que mascara um eu frágil, desamparado e constantemente ameaçado pela angústia da falta.

Nesse sentido, a vigorexia pode ser compreendida como uma patologia do excesso de idealização e da recusa da castração, em que o sujeito tenta, através do corpo, atingir um gozo pleno e impossível — um corpo invulnerável e absoluto que elimine a falta.

Diante disso, a clínica psicanalítica é desafiada a rever algumas de suas práticas. Não basta apenas interpretar simbolicamente o sintoma; é necessário criar dispositivos de escuta sensíveis à cultura contemporânea, que considerem:

  • A centralidade do corpo como lugar de inscrição simbólica e afetiva

  • A lógica neoliberal que transforma o sujeito em empresa de si mesmo

  • A exigência de perfeição que opera via supereu contemporâneo (que manda "gozar", "render", "vencer")

A escuta psicanalítica deve, portanto, tornar-se também política e ética, acolhendo o sofrimento subjetivo que se expressa por vias corporais e imaginárias. Os psicanalistas, frente a sintomas como a vigorexia, são chamados a inventar estratégias clínicas que favoreçam o reconhecimento da falta, o luto do eu ideal e a reintrodução do sujeito no campo do desejo, e não apenas da performance.


 

Bibliografia:

 

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

DOLTO, Françoise. A imagem inconsciente do corpo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo (1914). In: FREUD, S. Obras completas. v. 12. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

GRIEVE, Frederick G. A conceptual model of factors contributing to the development of muscle dysmorphia. Eating Disorders, New York, v. 15, n. 1, p. 63–80, 2007.

HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud (1953-1954). Rio de Janeiro: Zahar, 1996.

LASCH, Christopher. A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de esperanças em declínio. Rio de Janeiro: Imago, 1983.

LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Lisboa: Edições 70, 2004.

LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

POPE, Harrison G.; PHILLIPS, Katharine A.; OLIVARDIA, Roberto. The Adonis Complex: The secret crisis of male body obsession. New York: Free Press, 2000.

SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2006.


 

Este artigo foi finalizado em 02 de Junho de 2025

Psicanálise Contemporânea
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