MODERNIDADE E PSICOPATOLOGIA
- Olivan Liger
- 7 de mai.
- 8 min de leitura
A nova revisão do DSM-IV acirra a polêmica quanto a inclusão ou exclusão de sintomas e psicopatologias. Para alguns, a nova revisão transforma em psicopatologia, o que até agora não se classificava como tal. A depressão reativa, oriunda de um luto passa a constar na nova revisão como uma psicopatologia, sugerindo assim a intervenção medicamentosa, considerando que o referido manual é de uso médico, e a histeria deixa de ser uma psicopatologia nos moldes até então conhecida.
É seguro que temos nos últimos anos uma infinidade de sintomas que devem ser
referenciados como patologias e novas patologias. A agressividade desmedida, o transtorno midiático, a patologia do desvalimento, as novas nuances da anorexia e bulimia entre outras, surgem como sintomas não só de uma disfuncionalidade do indivíduo, mas da modernidade.
As novas formas de sofrimento surgidas, requerem ser compreendidas e desafiam as abordagens tradicionalmente usadas. Isto obriga os psicanalistas a pensarem de forma distinta, lhes trazem o desafio de encontrar novas formas técnicas de introduzir o tema da verdade, do sentido além das certezas científicas que caracterizam os tempos modernos.
Historicamente, as grandes mudanças começam a ocorrer nos idos dos anos 60, com a revolução sexual emblemada pelo famoso festival de Woodstock. A liberação sexual se torna o eixo de uma grande mudança de paradigma quando concede aos gêneros, o direito de exercer livremente a sua sexualidade. A mulher saí do âmbito de administradora do lar e mãe e passa a exercer um papel socialmente ativo em sentido amplo, do sexual ao profissional. Começa a fazer parte significativa do orçamento familiar e a ter direitos de opinião e decisão frente ao direito, até então, unicamente masculino. O homem, por sua vez, teve que se adaptar a um papel menos soberano e com restrições ao seu poder. Deixou de ser o provedor para ser co-provedor e com isto, passou a ser também uma co-autoridade. Numa sociedade machista, como a ocidental, o homem sofreu um abalo relevante no seu psiquismo. Já não sabia ao certo, o que lhe caberia adiante.
A pedagogia cria novos paradigmas e a educação sofre intervenções maciças de novos saberes. Incita-se a aproximação de filhos e pais, uma espécie de amizade entre ambos, os pais podem e devem ouvir seus filhos; introduzir o tema da sexualidade, até então, tido como tabu absoluto no ambiente familiar; orientar a atividade sexual de seus filhos e a ocupar um papel de parceiro. Diante da emergência de uma liberação sexual, da perda de papéis supostamente consolidados, a introdução de novos dos comportamentos dos pais em relação aos seus filhos acabou por enfraquecer ainda mais seus papéis, enfraquecendo também suas autoridades. O pai se tornou mero amigo e perdeu o seu poder de interdito, de educador, de limitador.
O Édipo vem se transformando desde então. O interdito paterno enfraquecido não só limita e constitui o sujeito frente as regras sociais, mas serve como modelo frágil de identificação. A mãe, agora uma trabalhadora engajada em conquistar uma carreira ou no mínimo um bom rendimento financeiro, pela culpa do abandono acaba por endossar o não interdito do pai, sendo permissiva ao extremo como mecanismo de compensação ao seu abandono ao lar.
Paralelo a todas as mudanças no âmbito familiar, mudanças no âmbito social também começaram a ocorrer. Dentre elas, vale destacar a implementação tecnológica recente que garante rapidez na obtenção de informação, independente da sua localização física, como também contato com pessoas de todas as partes do mundo através das redes sociais. Com tantas mudanças e com uma crescente demanda competitiva gerada pelo acesso a informações e frente a um constante desejo de pertencimento, abalado pela nova estrutura familiar, onde o sentimento de abandono e desvalorização acaba permeando as relações, os valores foram mudando para atender a essa modernidade.
Novos modelos hierárquicos foram se tornando mais evidentes. Antes, a hierarquia era uma estrutura a ser respeitada. Com a falta de interdito do pai, a hierarquia passou a ser vulnerável. A ordem do dia é destituir e conquistar o poder do superior. O superior é algo a ser atingido de forma rápida e triunfal como se vence uma guerra. Explica-se com isto a incidência de carreiras meteóricas obtidas por um esforço descomunal de acumular títulos. Segundo os novos requisitos estipulados pelos tempos modernos, o ser cede lugar ao ter, ter um título, ter um cargo, ter poder, ter bens, ter boa aparência, ter dinheiro, ter poder aquisitivo para comprar algo caro e incomum... enfim... “ter” passa a prevalecer sobre o ser, ser um bom amigo, ser sensível, ser inteligente, ser
honesto, ser ético. Se não importa mais a ética, importa a estética. A globalização atinge a ordem do privado que passa a ser público. A mídia passa a conduzir entrevistas com celebridades expondo sua vida privada. Separações, divórcios e casamentos de celebridades são capas de revistas e jornais. Audiências altíssimas são atingidas com os reality shows, incluíndo ai o padrão BBB. Filmes como “O show de Truman” escancara uma nova realidade. O privado, parte de uma identidade, se perde no domínio do público e com isto a identidade se enfraquece e se destitui de significado. Com tantas facilidades de informação, a nova sociedade moderna se constitui e constrói firmada
pelo conhecimento teórico, especializado da ciência e da comprovação científica. O mundo é construído pelo cálculo, prazos para ser promovido, avaliações de desempenho cada vez mais complexas e matemáticas, carecendo de significado.
É nesse contexto que novos sintomas se desenham. O fraco ou ausente interdito do pai se revela no constante infringir das regras. A permissividade culposa da mãe aparece na intenção egoísta de que tudo pode, na baixa tolerância à frustrações e em indivíduos emocionalmente regredidos. As condições borderlines aparecem no baixo controle dos impulsos destrutivos e raivosos, tão comuns no trânsito, no ambiente profissional e na familia. Das classes menos providas às autoridades, percebemos atuações infratoras, egoístas, competitivas, desonestas e agressivas. Se os indivíduos se encontram em estados regressivos e com estruturas emocionais falhas ou organizadas de forma caótica, a noção do outro praticamente inexiste. Se não existe o outro, não existe o respeito e nem a ética.
Os pais que estruturam essa grande familia social, o governo, cujos filhos são criança-adultos, servem como referências da falta de limite, da impunidade e do poder desenfreado. São autoridades e governos que se situam num continuum da desestruturação dos primórdios da familia.
A predominância de manchetes que enfatizam a criminalidade e atos destrutivos acabam funcionando como elemento banalizador do que não pode ser banal, assim a mídia acaba por fazer uma apologia às condutas torpes e destrutivas.
A carência do afeto, pela falta de subjetividade do mundo moderno se desloca para a sexualidade impondo ao indivíduo uma prática sexual de risco e crescente, na esperança de preencher um vazio que nunca é preenchido.
Num mundo psíquico preenchido de introjetos maus e com fendas estruturais, a
fantasia acaba sendo uma forma compensatória para manutenção da continuidade da vida banalizando a neurose generalizada da modernidade. No ápice dessa necessidade compensatória, outras vezes a fantasia passa a substituir a realidade de angústia e sofrimento intenso do indivíduo moderno gerando estados psicóticos tão comuns no cotidiano.
E como a psicanálise se posiciona frente às novas formas psicopatológicas da
modernidade? Como faz frente a essa nova realidade clínica? Freud fundamentou toda a psicanálise no tratamento da conversão histérica e da neurose. Se hoje a histeria ou neurose não serão consideradas como psicopatologias, o que e como a psicanálise tratará esses indivíduos em estado de padecimento constante?
Como toda técnica, a psicanálise busca novos aparatos para atender a demanda crescente de patologias mistas ou novas. Pesquisas são desenvolvidas em toda parte. A exemplo, há hoje pesquisas sobre as patologias do desvalimento na Uces e outras universidades, na Argentina. Também pesquisas sobre o tratamento da dependência química pela psicanálise, na Universidad de Chile, em Santiago. Enfim, há uma constante busca de conhecimento que fundamentará novas formas de tratamento em Psicanálise.
Mas, é seguro que a técnica ortodoxa não é mais tão eficaz como no tratamento das neuroses e histerias no passado e principalmente no tratamento das patologias do desvalimento, da psicose e da dependência química.
Assiste-se a um verdadeiro campo de experimentações na prática clínica. Algumas destas experimentações descaracterizam por completo a psicanálise. Fala-se hoje de atendimento psicanalítico breve e virtual. A própria formação psicanalítica sobre desvios e propõem formações online. Dissidências variadas, relembrando Lacan, acontecem em todos os sentidos. Instituições mais tradicionais se fecham à novas idéias. Instituições menos tradicionais tentam novos recursos técnicos entretanto acabam por se misturar a uma celeuma de supostos recursos que nem sempre são viáveis e confiáveis.
Para se dizer Psicanálise, espera-se no minímo a manutenção da sua essência, ou seja, o eixo teórico principal que se traduz na questão de tornar consciente os conteúdos reprimidos no id. Entende-se então que qualquer recurso agregado a uma análise deverá ser coerente com este cerne e ser justificado por uma relativa eficácia.
Com a urgência da modernidade, a mudança no atendimento psicanalítico começa com a frequência ao consultório. Uma reduzida minoria da população disposta a se submeter a uma análise teria tempo e poder aquisitivo para deitar em um divã três a quatro vezes por semana. O divã passa a ser alternado com o uso da poltrona em boa parte dos consultórios e a participação quase muda do psicanalista ortodoxo cede lugar a um psicanalista ativo, participativo e estimulador, sem no entanto ser diretivo. A premissa de tornar os conteúdos reprimidos conscientes deixa de funcionar nas patologias do desvalimento onde primeiramente se propõe a conduzir o paciente a perceber os estímulos e só depois de desenvolver uma relativa subjetividade, pode-se arriscar alguma interpretação. O psicótico requer útero e maternagem em algumas situações. São demandas impossíveis de ser atendidas pela técnica original freudiana.
As experimentações atuais mostram que é possível uma maior participação do analista no processo, desde que essa participação seja limitada a não prejudicar processos de livre-associação. A participação maior do analista parece servir como compensação a um formato de frequência semanal reduzida ao consultório. O uso de técnicas como fortalecimento egóico, metáforas e até mesmo a terapia medicamentosa funcionam como elementos aceleradores do processo. Entende-se psicanálise hoje como uma técnica construída não somente por Freud, mas por todos os que o sucederam: Bion, Winnicott, Horn e Lacan muito contribuem com variados conceitos que são complementares ao eixo de sustentação da psicanálise freudiana.
O dia a dia de um consultório psicanalítico é caracterizado por uma maior participação do analista, que clarifica; confronta; amplia; estimula; acolhe; escuta e interpreta,e do paciente que opina; contesta; lembra fatos e sentimentos e que reflete sobre todo o conteúdo da sessão, agregando às intervenções e interpretações do analista, uma verdade interna.
O papel passivo dominado por mutismo cede lugar a um papel instigador, estimulador que favorece ao paciente buscar suas próprias verdades internas, conectar conteúdos e vivenciar emoções.
A rigidez de agendamento das sessões foi substituída por uma maior flexibilidade frente aos pacientes de difícil acesso, principalmente os portadores da patologia do desvalimento. Sem dizer que se torna humanamente impossível manter uma rigidez de horários quando se vive numa grande metrópole como São Paulo, Nova York dentre outras caracterizadas pelo improviso das intempéries naturais e trânsito caótico.
Segundo Násio, a atualidade dos escritos freudianos se mostra quando alguém os lê e sente-se tocado porque revelam seus sentimentos mais íntimos, criando assim, uma certa cumplicidade entre um Freud que descobre e um leitor que se sente reconhecido. Diante dessa “atualidade secular” podemos justificar as adequações e adaptações que a psicanálise vem fazendo com o objetivo de se tornar uma prática eficaz e eficiente; uma prática singular, mesmo dentro de uma modernidade que tende a massificar, a globalizar, a desidentificar.
Há um longo caminho a ser percorrido pelos psicanalistas. A modernidade propõe abrir-se para novas idéias e experiências; novas pesquisas; novas formas de desenhar uma sessão analítica, sem no entanto se afastar dos eixos teóricos que sustentam a psicanálise. Tempos modernos.... tempos difíceis???
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