NOS CAMINHOS DA VIOLÊNCIA - DISCRIMINAÇÃO E VIOLÊNCIA
- Olivan Liger
- 13 de mai.
- 7 min de leitura
A destrutividade do sujeito sempre existiu desde seu nascimento, logo nos primeiros momentos do desenvolvimento, manifesta-se essa pulsão destrutiva como forma de punir o seio mau que não atende a demanda do bebê. Freud afirma que antes do amor, existe o ódio. O estado de indiferença relacional e ao mundo, que o bebê se encontra nos primeiros momentos de vida é a própria presença do ódio. Sendo a destrutividade uma pulsão natural do ser, e pela impossibilidade de auto-destruição, surge então a agressividade ao meio como derivativo dessa pulsão.
Desde cedo, o bebê aprende que para se obter o que deseja, precisa se submeter ao desejo do outro, logo entende que seu desejo está submetido a lei do desejo do Outro e a medida que segue seu desenvolvimento, depara-se com o Pai Castrador, aquele que impõe a lei primordial de não poder desejar o progenitor, mas também insere o sujeito na linguagem, inscrevendo-o no registro do Simbólico. Um significante para várias significâncias. A lei do pai, a princípio personificada, passa a ser simbólica e introduz e filia o sujeito à cultura, a qual promete prover segurança para que se posicione no mundo . A metáfora paterna é o ponto de amarração do sujeito neurótico e o conduz para viver em civilização. Para viver em civilização é necessário que haja a submissão à lei do desejo do Outro, esse outro, a cultura, dita regras que devem ser seguidas para em troca obter-se um suposto amparo, proveniente da filiação à cultura. O sujeito tem que renunciar aos seus desejos pessoais em prol de um ganho maior: amparo e segurança. Refletir sobre a violência hoje, conduz a conjecturar diversas hipóteses que possam tentar esclarecer suas causas como sintoma social.
Um dos pontos chave para tentar desvendar o porque da violência está no que Lacan chamou de “falência do nome-do-Pai”. O modelo estrutural da família vem se modificando a partir dos progressos tecnológicos, conquistas sociais e fatores globais que afetam determinada cultura. A mãe, antes dona de casa, passa a exercer funções diversificadas, entre elas a função profissional,
social e materna. Ao compor a renda doméstica, ganha com isso autoridade. O Pai, único provedor no passado e detentor do falo, se contrai nessa nova composição, tendo por vezes, menor poder de lei do que a mãe. A função materna e paterna sofrem modificações nessa nova estruturação familiar, dificultando a imposição da lei e consequentemente a inserção na cultura em função de uma mãe com muitos papeis e um pai enfraquecido como agente da lei. Constata-se hoje patologias que estão aquém da neurose. Trata-se de atos-sintomas, desvalimento e psicose, além da tão conhecida perversão. É sabido que na psicose, o pai não funciona como lei. Na perversão, a lei paterna é meia-lei. Nos atos-sintomas e no desvalimento, não se alcança sequer a figura do pai,
ficando a libido fixada em etapas bem primitivas do desenvolvimento. Se o sujeito não cruzar o Édipo e da metáfora paterna, herdar sua filiação, terá obviamente grande dificuldade de se adaptar a uma convivência social nos moldes que se considera ter vivido no passado. Seguindo esse viés e partindo de um sujeito com uma constituição subjetiva fragmentada, fala-se então de um sujeito contemporâneo que, não tendo aceitado integralmente a Lei paterna, se pauta pela ausência de limites, de lei e de capacidade de um convívio grupal saudável. Paralelo a isto, novas formas de convivências devem existir para encobrir não somente a incompletude humana, a falta constitutiva, mas também garantir uma forma precária de
convivência cultural, a insegurança de não sentir-se amparado e a manutenção do hedonismo. Inventa-se terapias mágicas, anti-depressivos e se vive sob o mote de prazer a todo custo. Para ter prazer a todo custo sem ter que nada renunciar, acaba justificando a violência como um sintoma social, pois em nome do prazer o outro deixa de ser considerado, tem que ser combatido
quando encontra-se na posição de obstáculo ao prazer.
Não há lugar para a tristeza, a qual também é constituiva e se torna elemento indispensável para o desenvolvimento do sujeito. Combate-se a tristeza e a depressão com uma infinidade de anti- depressivos que prometem a manutenção de uma ilusória felicidade.
O Capitalismo que dá à economia de uma nação, o estatuto de falo valoriza o sujeito pelo que tem e não pelo que é, desprezando a subjetividade e colocando-o na posição de muito produzir para ser reconhecido. Consumir é a forma de preencher o vazio interno de uma existência na qual os valores de “ser” foram substituídos pelos valores de “ter”. O ócio é sentido como culpa de nada fazer, pois não há espaço vazio na atualidade, todos os espaços devem ser preenchidos para produzir seja lá o que for. Mesmo o lazer se transforma numa obrigação quando faz parte de uma atualidade que o dita como obrigatório. A economia é o falo da nação, destituindo qualquer outro poder, assim como a posse de bens e sua capacidade de produzir é o falo do sujeito na contemporaneidade. Se tudo se pode, se a atualidade permite a expressão direta do desejo, sem filtros, se o que vale é ter prazer o tempo todo, obviamente tudo que obstruir esse caminho tem que ser destruido e invalidado, assim a violência encontra um terreno fértil para crescer. Não pode ser vista como um sintoma patológico social, pois é o recurso que favorece as demandas da atualidade. Se não é um sintoma patológico, acaba por ser banalizada e se torna um traço da cultura. Ao se combater a violência com a própria violência, resulta na legitimação da mesma como um valor de cultura, a exemplo disto, observa-se a forma como o esquadrão de choque e a própria policia militar combate as manifestações diversas na cidade de São Paulo.
Se a renúncia à pulsão destrutiva era necessária no convívio social em troca de um suposto amparo, hoje é possível observar desde as esferas mais altas do poder até as mais baixas, um desamparo visível, a perda das ilusões e da utopia. Quem ampara o sujeito da atualidade? Quem o defende? Quem o protege?
A perversão que é estampada em cada manchete de jornal com relação às nossas autoridades , a perversão do Outro, conduz o sujeito a um pensamento de que “cada um tem que cuidar de si”. Cuidar de si implica em preservar-se vivo e preservar a possibilidade da obtenção de prazer, e mais além disso, viver como prega a atualidade: feliz, fazer calar o barulho da dor interna com mais barulho ainda, surgem as raves, buzina-se todo o tempo, acrescenta-se mais ruido à cidade para não ouvir os próprios gritos de dor. O sujeito da atualidade violenta-se frequentemente e usa a violência contra o outro. O que importa incomodar o outro com um volume de música alta no carro, madrugada ao voltar para casa? A falta de limites e de respeito para com o outro, os pares, implicam diretamente na violência. A violência é o resultado dos excessos, e como sintoma social, conta de uma cultura de excessos; excesso de prazer, de informação, de produção, de aquisições, etc...
A violência e o ódio são os indicadores da quebra de vínculo com o outro, da solidão e de cada um ter que cuidar de si, que se impõe ao sujeito contemporâneo. O sujeito não pode, embora castrado, confrontar a sua própria castraçao na atualidade, pois isto invalidaria a máxima de prazer a todo custo. Castração implica em limite, frustração e desprazer. O limite gera rivalidade. Confrontar o outro castrado é lidar com a própria castração, logo surge o aumento da intolerância seguido da violência que resulta no enfraquecimento do laço social. E tudo que remete à pobreza, à obstrução do prazer, à fragilidade do sujeito, à tristeza ou que ameace obstruir a sociedade do espetáculo, termo cunhado por Guy Debord a partir da compreensão de que a sociedade passou a ser regulada por critérios estéticos e não mais éticos, acrescenta ainda ser a atualidade uma espécie de imperio do narcisismo, no qual o individualismo é sua característica principal, deve ser discriminado ou eliminado. O negro, no imaginário, é o pobre escravo do tempo da colônia, é o favelado da grande metrópole. O negro denuncia ao inconsciente do sujeito contemporâneo, aquilo que não cabe na atualidade: a pobreza. Tem que se erradicar a pobreza, a miséria, a tristeza a todo custo de uma atualidade espetacular como a nossa.
Assim discrimina-se pobres, negros, idosos que nos lembram que ainda não inventamos um método de garantir a longevidade. Não há lugar para aquele que nos ponha em contato com as diferenças e as facetas de dor da ordem do humano, São evidências do humano que devem ser eliminadas ou apagadas para não embotar o palco iluminado de felicidade e prazer que demanda a atualidade.
Entretanto, a violência como sintoma, encerra um paradoxo. Para a psicanálise, o sintoma é uma solução encontrada pelo sujeito para expressar seus conflitos internos recalcados, os quais referem-se às suas paixões, faltas e sofrimento. O sintoma tem o endosso e autorização da cultura pois pode ser historicizado dentro de um tempo e de uma cultura específica. É aquilo que não encontrou outra forma de expressão, uma tentativa de realização pulsional e a expressão cultural permitida. O paradoxo tem lugar no ato violento como expressão da dor e do sofrimento do sujeito contemporâneo. Trata-se da ética do inconsciente denunciando a organização social e cultural.
Mas do que sofre o sujeito contemporâneo? Sofre daquilo que não pode sofrer: do sofrimento constitutivo que não tem lugar na atualidade e que ameaça a cultura do prazer, do espetáculo e a ilusão da satisfação total. Logo, sofre da violência de não poder se constituir e crescer através da dor, da tristeza, da falta e da espera. O sujeito contemporâneo é privado de sua subjetividade como recurso para o seu próprio crescimento, e talvez esta seja a maior violência sofrida na atualidade.
Bibliografia:
BIRMAN, J. Mal estar na Atualidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999
DEBORD, G. A sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000
FREUD, S. Mal Estar na Civilização. Obras completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, volume 21, 1988
LOPES, M.M.F. O conceito de amor em psicanálise. São Paulo: Centauro editora, 2009
MARIN, I.S.K. Sofrimento e violênia na contemporaneidade: destinos subjetivos. in Leituras
Psicanalíticas da Violência. São Paulo: Casa do Psicólogo.
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