DEPRESSÃO: EMERGÊNCIA DE UM TEMPO
- Olivan Liger
- 15 de mai.
- 10 min de leitura
Somos constituídos como sujeitos através do Outro que nos conta inicialmente quem somos ou que posição temos no mundo. O olhar, o gesto, o tom de voz de quem faz a função materna nos constitui. A forma como as nossas demandas iniciais de vida são atendidas é a referência que carregaremos para estar no mundo e com o Outro. A partir dessa relação com o Outro, buscamos o amor e vamos criando, através dos laços libidinais, um sentido para a existência.
O sentido de identidade que nos conta quem somos e nos dá uma posição com base em uma certa estabilidade no mundo que vivemos e em nós mesmos é fruto de sucessivas experiências pelas quais passamos ao longo da nossa existência. Criamos um patchwork de experiências que dão sentido de realidade e a possibilidade de interagirmos com o mundo de forma pulsional. Essas sucessivas experiências constroem um sistema oscilatório de oposições que chamamos de vida. Viver é então estar emergindo em momentos plenos de
felicidade para, em seguida, entrarmos em contato com momentos de perda e esvaziamento, sentimo-nos integrados, coesos para, em seguida, entrarmos em momentos de fragmentação. Esta é a dinâmica que nos conduz ao crescimento psíquico, ao amadurecimento.
Os momentos de perda e esvaziamento são momentos de depressão constitutivos do ser, tanto quanto a presença do Outro que abre a possibilidade da espera de satisfação pulsional, inaugurando um tempo psíquico no sujeito. Aqui tem-se o entrelaçamento do sujeito com o Outro, com o tempo psíquico e cronológico e com as experiências iniciais e posteriores que o colocam na posição de estar no mundo. Decorrerei sobre a depressão a partir desse entrelaçamento costurando o pensamento de alguns autores do nosso tempo.
A obra de Freud não tem uma dedicação profunda à questão da depressão. Em “Luto e Melancolia” (1915), a questão da depressão se confunde com a melancolia, tornando-se um conceito confuso e que gera equívocos em textos atuais, fazendo parecer que a depressão é englobada pela melancolia, ou uma é tomada pela outra, o que não é verdade. Entretanto, a partir desse texto Freud introduz a melancolia, antes domínio da psiquiatria, na clínica psicanalítica, ao mesmo tempo que retira o véu de glamour que desde a história antiga, revestia a melancolia fazendo dela uma representação sublime dos gênios criativos. Embora, eu me referencie no texto de Freud, buscarei decorrer sobre a depressão do nosso tempo, que emerge nesse tempo e se torna uma emergência, daí o título: -Depressão: emergência de um tempo.
Manoel Tosta Berlinck (2000) afirma que há patologias que se tornam dominantes em cada época. A tragédia grega, nos tempos antigos, denunciava a forma como o homem era afetado pela paixão. A histéria, no séc. XIX, denunciava a posição feminina frente a repressão sexual e atualmente a depressão, patologia emblemática da pós-modernidade, aparece como um sintoma social, já que trata-se de uma epidemia.
A depressão é um movimento no psiquismo que configura uma ausência de sentido, um esvaziamento. Para a psiquiatria, trata-se de uma disfunção nos neurotransmissores serotonérgicos passível de ser tratada com medicamentos antidepressivos. Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), a depressão será a segunda doença mais prevalente no mundo, ficando em primeiro lugar o infarto agudo do miocárdio, em 2020. No Brasil, desde 2008 até 2012, segundo dados da OCDE (Organização para a Cooperação Economica e Desenvolvimento), a venda de antidepressivos subiu 48% e em dois anos (2011/2012), houve um movimento de R$1,59 bilhões de reais na compra desses psicofármacos. No mundo, a Islândia e Estados Unidos lideram as maiores taxas de prescrição de antidepressivos com o número aproximado de 100 doses diárias por 1000 habitantes, seguidos do Canadá, Austrália e Reino Unido. A indústria farmacêutica induz a crença de quea depressão é uma desordem neurofisiológica, passível de ser curada com prescrição de antidepressivos, reduzindo o deprimido a um corpo sem sujeito.
Para a psicanálise, a depressão é o empobrecimento da vida psíquica que resulta numa sensação de perda de sentido da vida como um todo. Esta definição é um consenso geral para todos os psicanalistas, porém é o sintoma-afeto de muitas causas. Muitos autores, estudiosos do tema, têm levantado hipóteses para a compreensão desse afeto nos dias atuais.
Que tempo é este? - O tempo do Outro.
A contemporaneidade tem como traço característico a quebra das tradições e o capitalismo. As referências de autoridade vão progressivamente sendo destruídas como ícones de repressão, resultando numa necessidade de satisfação pulsional a todo custo, já que não há lei, e introduzindo uma novo paradigma cultural: - da exaltação do prazer e eliminação da dor e da angústia. Na contemporaneidade não há lugar para a dor, há pilulas da felicidade anunciadas pela indústria farmacêutica que nunca achou terreno tão fértil para o seu crescimento. Hoje, temos uma sociedade barulhenta, que fala alto, que escuta música em volume alto, que promove raves e festas ruidosas para abafar a dor e a angústia.
O prazer é ofertado de diversas formas e nas mais variadas promessas: compre o produto X ou Y e relaxe; realize seu sonho em infinitas e suaves prestações; compre pelo site, sem sair de casa e garanta seu desconto. Enfim, tenha uma gama de experiências prazerosas todo o tempo, sem interrupção.
O tempo ficou curto para tantas demandas fazendo com que o sujeito da atualidade tente esticá-lo tanto quanto possa. Tem que se desfrutar e aproveitar o máximo do tempo, sem ócio ou preguiça, sem tempo livre para não perder tempo. Supermercados e cinemas 24 horas, pista de gelo para patinação em pleno verão tropical, neve artificial num natal tropical e outras parafernálias rompem com qualquer tipo de proibição em relação ao tempo. Não se depende mais da limitação das horas de luz solar e nem das estações climáticas.
A economia, falo da nação, passa a desbancar o mundo político, o estado e a ética, que serviam como fundamento para a organização subjetiva do homem moderno, resultando numa falta de norte para a coletividade.
Os avanços tecnológicos e a globalização impactaram diretamente na identidade do homem moderno, tendo que tentar adaptações rápidas para responder a demanda social desse tempo. Com isto, sua identidade fragilizada é impactada todo o tempo, tornando se uma identidade móvel, volátil, instável, em função de ter que responder as demandas rápidas do mundo exterior sem o devido tempo de assimila-las. Não é unificada e tão pouco coerente. É uma identidade descentralizada, não fixa, não essencial e não permanente. Uma identidade que não se consolida devido a rápida necessidade de constantes e novas adaptações ao mundo exterior. Esse é o sujeito pós-moderno.
O tempo do sujeito:
Num verdadeiro malabarismo, o sujeito pós-moderno tenta se desdobrar em vários para responder a tantas demandas e transforma propostas de prazer em atos cansativos e vazios, os quais têm que ter a comprovação do seu prazer e a obtenção resultados. A vida é cronometrada de forma a atingir a máxima precisão e máxima velocidade nas respostas de demandas que surgem de todos os lados. Instalou-se uma compulsão em produzir desmedidamente e buscar prazer todo o tempo, desorganizando a experiencia subjetiva da
temporalidade.
Já não há um estado sólido que promova a experiência de segurança e continuidade portanto não há lugar para planos a longo prazo, pois tudo é líquido e fulgás, usando a expressão de Zigmunt Baumann. É um tempo de errância e desesperança que resulta de um profundo sentimento de desamparo.
Para o psicanalista Joel Birman, numa entrevista concedida à Revista Latino americana de Psicopatologia Fundamental, a depressão e outros pathos desse tempo são consequências desse desamparo:
Parece me que tanto a depressão quanto o uso de drogas, bem como as novas formas de violência que as perdas de referências produzem, nos leva a concluir que, se no fundo da organização da subjetividade moderna existe aquilo que Freud chamou de “desamparo” - e eu acho que de uma certa maneira a depressão, o uso de drogas e a violência advêm desse desamparo, - o fato é que a mudança da qualidade das experiências de desamparo ocorre hoje porque o desamparo transformou-se naquilo que eu chamo de “desolamento”, uma vez que não temos mais interlocutores que nos ofereçam pontos de referência no plano político e imaginário para que a subjetividade possa se organizar. (BIRMAN, 2001, p. 172)
Se a experiência do desamparo é constitutiva, conforme Freud afirma no “O mal estar da civilização”(1930), “o protótipo depressivo arcaico do espaço psíquico” (Fédida, 1999) e portanto incurável, carece de referências para que possa se integrar à subjetividade e se contrapor à experiências de acolhimento e proteção. Se falta a referência da proteção, da segurança e do pertencimento, a qual resgata o sujeito do desamparo, a experiência do desamparo e do vazio por ela gerado serão cronificados na forma de depressão.
Bibring (1953) afirma que a depressão é o resultado da tensão entre ideais e realidade, originada das aspirações narcísicas altamente investidas: - ter valor e ser amado; - ser forte e superior; e – ser bom e amoroso. São padrões de condutas sentidos no ego como uma incapacidade real ou imaginada de estar à altura destes ideais, gerando um colapso parcial ou completo na auto-estima, uma vez que o ego se sente incapaz de alcançar seus ideais, embora sejam fortemente mantidos.
Silvano Arieti (1977) sugere que indivíduos que mantinham uma posição de dominado perante “o outro dominante”, numa tentativa de responder a todas as demandas do outro com o objetivo de assegurar o não abandono, sem considerar suas próprias demandas são aqueles que se tornarão deprimidos ao perceberem que a forma de vida que levam não resulta em nenhum bem próprio, embora não consigam mudar a situação.
Fédida (1999) chama a depressão de “doença humana do tempo”: -”Uma doença humana do tempo que afeta a representação e a ação, as potencialidades da linguagem, assim como a comunicação com os outros”. Ao introduzir o termo “tempo” de forma tão ampla, Fédida pressupõe tempos diferentes quando deixa o termo tão aberto e sem uma definição única: o
tempo do psiquismo, o tempo cronológico, o tempo do Outro.
Maria Rita Kehl teoriza a depressão como um sintoma social que responde ao tipo de relação que o sujeito tem com o tempo do Outro. Trata-se de uma posição do sujeito frente ao seu tempo. Para a autora, o deprimido tem na sua história primordial um Outro que se fez falo em excesso. Uma mãe com excesso de solicitude que responde antecipadamente à demanda imaginária do seu bebê, sempre ansiosa e apressada intercepta a temporalidade psíquica tentando suprimir o tempo da espera da satisfação da pulsão, o qual seria a primeira noção de falta para o bebê e a partir do qual se fará sua inscrição no registro do imaginário. Para o sujeito em formação, o excesso de solicitude e ofertas da mãe é entendido como demandas do Outro.
A partir do tempo apressado, ansioso e demandante dessa mãe, formas imaginárias desse tempo do Outro são criadas e sustentadas pela contemporaneidade que não admite perda de tempo. Esse novo tempo demanda que todo tempo deve ser preenchido pela busca de satisfação pulsional imediata e pela produção desmedida.
A depressão tem como característica a lentificação do sujeito, assim como a perspectiva de falta de sentido da vida. Se a temporalidade psíquica foi interceptada, impedindo parcialmente o bebê de criar representações do objeto faltante e a partir dai criar seus próprios recursos de fort-da, entendo que isto implica numa dificuldade de dar sentido para o mundo, de criar uma teia de sentido e amparo que constituirá sua subjetividade.
A lentidão do deprimido, segundo a autora, ocupa o lugar do sintoma social e tem como objetivo fugir do excesso de ofertas, entendido como demandas do Outro. Expressa uma discordância em relação ao tempo do Outro. Um paradoxo quando internamente o deprimido faz o seu tempo parar em contraste com um tempo veloz e demandante do Outro. Denuncia sua incapacidade de atender às urgências da contemporaneidade.
Por não ter exercitado sua criatividade e suas brincadeiras de fort-da, devido à antecipação do Outro ao tentar advinhar as suas demandas, emerge o vazio como queixa principal do deprimido em análise.
Aquilo que é constitutivo, a tristeza que é parte da gangorra da vida, é patologizada. O capitalismo e o hedonismo característico da contemporaneidade impõe a promessa de felicidade através da ingestão de antidepressivos e com isto perde-se a possibilidade de crescer, de fazer a virada da gangorra, de conhecer sobre a dor de viver e de observar a que responde essa tristeza. A que responde essa depressão como sintoma neurótico e como sintoma social?
Entendo que a depressão é um afeto complexo, que não pode ser reduzido a um conjunto de sintomas, mas que necessita ser compreendido como uma denúncia do sujeito frente ao Outro, ao tempo do Outro e ao seu próprio psiquismo. Um afeto que surge espontaneamente como parte do estar vivo e que tem muito a ensinar e a representar. Um afeto que pode ser o resultado de estar num mundo desconhecido, velozmente mutante, onde os vínculos sociais são frágeis para sustentar a troca e a experiência com o outro, empobrecendo a subjetividade e que talvez não tenha que ser suprimido pela via medicamentosa, mas suportado, aprendido a ser suportado como característica de um tempo. Um tempo DE PRESSÃO E DE PRESSA.
Questiono também se a depressão não denuncia a desvalorização do subjetivo num mundo que busca objetividade em tudo. E se a forma mais fácil de expressão subjetiva for a dor e o vazio que denuncia a tentativa de seu aniquilamento?
O sintoma neurótico da depressão denuncia a incapacidade do sujeito de lhe dar com o vazio interno resultante da função materna excessiva, com a fragmentação registrada nos primórdios de sua história ocorrida por uma permanência maior no desamparo ou até mesmo por identificações com pais deprimidos.
O sintoma social da depressão denuncia a pressa e a pressão exercida pela
contemporaneidade no sujeito, pelo desamparo e desesperança gerado pela implosão da autoridade e a entrada do domínio do capitalismo destituído de ética.
Assim sendo, podemos reunir o pensamento de diversos autores numa colcha de retalhos, cujas partes nos mostram um todo que é a posição depressiva na contemporaneidade. Sem deixar de lado nenhum dos retalhos que compõe essa visão maior da colcha, podemos repensar a depressão como parte desse tempo e compreendê-la na tentativa de elaborá-la, ao invés de tentar inutilmente suprimir seus sintomas.
Bibliografia:
ARIETI, S. Psychoterapy of severe depression. American Journal of Psychiatry, 1977
BIBRING, E. The mechanism of depression, in affective disorders: - Psychoanalytic contributions to their study. New York: International Universities Press, 1953
BERLINCK, M. T. Psicopatologia Fundamental. São Paulo: Editora Escuta, 2000
BIRMAN, J. O mal estar na atualidade, São Paulo: Editora Civilização Brasileira, 1999
ENTREVISTA COM JOEL BIRMAN. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. São Paulo. IV, 2, 168-172. Junho de 2001, disponível em
<http://www.fundamentalpsychopathology.org/uploads/files/revistas/volume04/n2/entrevista_com_joel_birman.pdf> acessado em 16 de Outubro de 2014
FÉDIDA, P. Depressão. São Paulo: Editora Escuta, 1999
KEHL, M. R. O tempo e a depressão. Disponível em <http://www.mariaritakehl.psc.br . Acessado em 18 de Outubro de 2014
LIGER, O. L. Um olhar psicanalítico sobre a contemporaneidade e suas emergências. Rio de Janeiro: Editora Livre expressão, 2010.
RAMOS, H. M., MALZYNER, M. Quando a vida perde o sentido. In: MARRACCINI, E. M. O Eu em Ruína -perda e falência psíquica. São Paulo: Primavera editorial, 2010
REIS, E. F. A depressão na atualidade, disponível em
<http://www.sedes.org.br/Departamentos/Formacao_Psicanalise/depressao_na_atualidade.htm>Acessado em 17 de Outubro de 2014
SILVA, P. J. C. Melancolia, dor e ruína. In: MARRACCINI, E. M. O Eu em Ruína -perda e falência psíquica. São Paulo: Primavera editorial, 2010
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